quarta-feira, 25 de março de 2009

Vladimir Putin: em busca do tempo perdido

Alphonse van Worden - 1750 AD






- Dadas as contradições estruturais (cf. revolução microeletrônica e superveniência crescente do capital especulativo sobre o setor produtivo) do vetor estatista do sistema produtor de mercadorias, que se avolumaram em progressão geométrica a partir dos anos 70 do século passado, China e URSS viram-se diante da inadiável necessidade de reformular suas economias, tendo em vista que suas tendências disfuncionais não paravam de se agravar.

- A República Popular da China, se calhar em virtude da onda de choque, tanto simbólico-institucional quanto político-administrativa, desencadeada pela morte de Mao Zedong em 1976, largou na frente, dando início, já em 1978, a um amplo programa de reestruturação econômica. Desde então, o processo chinês, ainda que com movimentos pendulares de maior ou menor intensidade, tem se caracterizado por um norte estratégico nítido: abertura econômica + manutenção do monopólio do poder político por parte do PCC. Trata-se, portanto, de liberalizar a atividade econômica, de flexibilizar relações trabalhistas e mecanismos de gestão, sem, contudo, renunciar ao controle operacional de todo o processo por parte do mandarinato vermelho. Assim sendo, todas as iniciativas de abertura econômica são estritamente condicionadas pelos desígnios e necessidades estratégicas do Estado chinês; há que frisar, aliás, o sucesso do regime na implementação dessa sutil dialética, pois o Partido não apenas conservou intacto o monopólio do poder, mas logrou fazê-lo ao mesmo tempo em que promove um duradouro ciclo de intensíssimo desenvolvimento econômico capitalista. Ainda que se possa indagar a propósito da viabilidade ulterior de tal dinâmica, ou seja, sobre por quanto tempo mais o PCC, que tão hábil vem se revelando na improvável dialética de, a um só tempo, centralizar o poder político e abrir a economia, conseguirá tão prodigiosa mágica socioeconômica, é mister reconhecer que, até o momento, tudo está ocorrendo conforme o talante do aparato dirigente.

- A URSS, por seu turno, deu início a um processo análogo em 1985, com o advento de Mikhail Gorbachev ao posto de Secretário-Geral do PCUS. A reformulação sistêmica soviética, através das políticas cunhadas por Gorbachev e seu mais notório 'guru', o diplomata Alexander Yakovlev, enveredou por uma perspectiva diametralmente oposta à dinâmica que ocorria no 'Império do Centro': enquanto a arguta liderança chinesa manteve intacta a capacidade operacional do PCC, submetendo a dinâmica de reformas ao imperativo estratégico mais amplo do Estado, Gorbachev tencionou revigorar a URSS por intermédio da liberalização política, afrouxando com isso os dispositivos de controle estatal. Tal iniciativa, com efeito, não apenas falhou miseravelmente em regenerar a combalida economia socialista, mas também mergulhou o país no caos absoluto, desestruturando a sociedade soviética em praticamente todos os níveis e esferas de ação: as vicissitudes no sistema de transportes e distribuição de mercadorias, eterno ponto de estrangulamento no gigantesco País dos Soviets, agravaram-se sobremaneira, elevando estratosfericamente os custos em todos os setores da economia; a agricultura, outro 'calcanhar-de-Aquiles' tradicional na história soviética, também entrou em colapso, desencadeando uma série de crescentes crises de desabastecimento; a indústria, outrossim, que já vinha perdendo competitividade e eficácia desde anos 70, foi sufocada pela vertiginosa espiral inflacionária, bem como pela progressiva desorganização dos mecanismos de gestão; os ressentimentos ancestrais contra a 'Mãe Rússia', arraigados em quase todas as nacionalidades agregadas sob o pavilhão soviético, e que até então se conservavam mais ou menos represados pelo poder central, explodiram com grande violência no bojo da 'redemocratização', abalando os pilares do aparato estatal soviético. Assim sendo, o desenlace de tão ominosa dinâmica, conjugando anarquia econômica e 'liberalização' política caótica e irresponsável, não poderia ter sido outro: em 1991, apenas 5 após sua implementação, a demoníaca obra de destruição levada a cabo por Gorbachev conseguiu, enfim, dissolver a URRS.

- Com o advento da era Yeltsin, em 1991, célere propagou-se a metástase do câncer socioeconômico instaurado por Gorbachev. A ausência de uma gestão veramente democrática no seio do aparato partidário e da máquina estatal, questão que de modo algum foi solucionada pela glasnost, possibilitou a emergência de uma burocracia rapace e parasita; e com o fim da URSS, num contexto de severa deterioração da economia, foi possível constatar a consumação lógica deste processo, uma vez que, com a privatização em massa das empresas estatais, a classe de administradores públicos de imediato converteu-se em empresariado privado, havendo apenas uma transferência jurídico-formal da propriedade. Ao nos debruçarmos, pois, sobre o ciclo de privatização acelerada da economia que se deu com a ascensão de Boris Yeltsin, constataremos que grande parte da antiga burocracia gerencial soviética, tanto em termos de setor industrial quanto de financeiro, converteu-se maciçamente em classe proprietária. A expropriação econômica desencadeou-se portanto como epifenômeno lógico-empírico de um processo de expropriação política que já havia se forjado décadas atrás. O estamento administrativo transformou-se, com efeito, em alta burguesia proprietária; e se examinarmos mais acuradamente o fenômeno em tela, veremos que se trata, na verdade, não de uma metamorfose estrutural, mas sim de uma transferência maciça de titularidade nominal, uma vez que os meios de produção já estavam informalmente sob controle total de uma parcela de burocratas. Constituiu-se, assim, a famigerada casta de poderosos oligarcas intimamente ligados ao Kremlin, levando a efeito toda sorte de operações ilegais (tráfico de ópio através do Mar Negro, inclusive) sob o manto protetor da corrupção que tomou conta da administração pública em todas as esferas. E como se não bastasse, Yeltsin, atuando como infame gendarme a serviço das potências ocidentais, reprimiu duramente o conjunto das forças políticas nacionalistas durante a chamada ‘crise constitucional’ de 1993: sob a audaz liderança do vice-presidente Aleksandr Rutskoy e do deputado Ruslan Khasbulatov, o Soviet Supremo insurgiu-se contra o poder executivo num esforço desesperado para deter o sórdido processo de aniquilação do país capitaneado por Yeltsin, que tragicamente, com a colaboração da corrompida alta cúpula das forças armadas, sufocou o levante e instaurou definitivamente a traição nacional como ideologia vigente.

- É nesse cenário de ‘terra devastada’ que emerge na vida política russa, em meados dos anos 90, a figura de Vladimir Vladimirovich Putin. Vice-prefeito de São Petersburgo na primeira metade da década, diretor da FSB (ex-KGB) entre 1998-99, Putin foi nomeado por Yeltsin primeiro-ministro da Rússia em setembro 1999, vencendo em seguida as eleições presidenciais em 2000. A princípio não nos pareceu, há que salientar, que o ex-tchekist faria uma gestão essencialmente distinta do catastrófico legado de seu antecessor. Açodadamente julgávamos que Putin não teria condições, ou até mesmo vontade política, de empreender um esforço sério e resoluto de soerguimento político-econômico da Rússia, mormente em virtude da correlação de forças desfavorável ao país na esfera geopolítica internacional; não obstante, já em 2001, muito embora cometesse, em termos de política externa, o grave erro de apoiar a intentona imperialista contra o Afeganistão, seu governo emitiria o primeiro sinal positivo de caráter inequívoco: a abertura de processos por corrupção, evasão fiscal, desvio de recursos públicos e outros ilícitos contra os principais elementos da camarilha de oligarcas yeltsinistas, Boris Berezovsky e Mikhail Khodorkovsky, assestando assim um rude golpe nos setores mais entreguistas e antipatrióticos do panorama político russo. Putin também condenaria, nos termos mais acerbos, a invasão do Iraque em 2003, no esteio da implementação, a partir de 2002, de uma política externa mais soberana, agressiva e antiimperialista, em flagrante contraposição à postura gorbachevista / yeltsinista de humilhante submissão aos desígnios do Ocidente. No plano interno, é mister sublinhar que Putin levou a efeito um amplo programa de reorganização e dinamização da economia, aumentando os investimentos estatais tanto em infra-estrutura quanto em setores de tecnologia de ponta, estimulando assim a atividade produtiva de uma maneira geral; no que tange ao bem-estar da população, sua administração tem se empenhado em resgatar a ciclópica dívida social acumulada pelos governos de Gorbachev e Yeltsin, implementando numerosos programas de auxílio a aposentados, desempregados, mães solteiras e demais parcelas da população cruelmente desassistidas nos últimos 15 anos; em termos culturais, por fim, é nítida a adoção de toda uma estratégia de ação governamental no sentido ressuscitar o secular orgulho nacional russo, o que se reflete numa sutil mas emblemática orientação ideológica eslavófila (não por acaso, consoante se pode constatar, figuras de proa da ‘revolução conservadora’ russa, como o ínclito Aleksandr Dugin, por exemplo, adotam uma sagaz atitude de apoio crítico a Putin); há também, outrossim, o intuito de reforçar a presença da fé ortodoxa na vida do país, o que revela, vale dizer, o descortino psicológico de Putin, pois não há como reerguer a Rússia senão através da revitalização de suas matrizes espirituais.

- A eleição, sob os auspícios do presidente Putin, de Dmitri Medvedev em março último, sinaliza, queremos crer, a continuidade do processo adrede esboçado.Que o novo mandatário possa, destarte, dar prosseguimento ao polifônico e ambicioso movimento de reconstrução nacional iniciada por seu mentor, pois É preciso, pois, recuperar o tempo perdido, para que assim a Rússia enfim volte a ocupar plenamente o plano de destaque que lhe cabe no concerto das nações e, acima tudo, fazer com que a sempiterna Rodina reencontre seu destino glorioso e triunfal.

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