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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Metafisica da Guerra


Cap. V e Final de "Metafísica da Guerra", de Julius Evola



Atingimos o fim desta concisa obra consagrado à guerra como valor espiritual referindo-nos a uma última tradição do ciclo heróico indo-europeu, aquela do Bhagavad-Guita, talvez o mais célebre texto da antiga sabedoria hindu, escrito essencialmente pela casta guerreira.

A sua escolha não é arbitrária nem deve nada ao exotismo. Conforme a tradição islâmica nos permite formular, no universal a idéia de “grande guerra” interior, possível contrapartida da alma numa guerra exterior, a tradição transmitida pelo texto hindu nos permite enquadrar definitivamente nosso tema numa visão metafísica.

Sob um olhar mais abrangente, esta referência ao Oriente hindu, ao grande Oriente heróico e não àquele dos teólogos, dos panteístas humanitários e das velhas damas em êxtase diante de Gandhi e dos Rabindranath Tagore, parece-nos igualmente útil para ratificar as opiniões e a compreensão supra tradicional que não são os mínimos objetivos que nós procuramos. Ficamos tempo demais escravos das antíteses artificiais Oriente/Ocidente: artificiais pois são baseadas no último Oriente modernista e materialista, que afinal, tem pouco de comum com aquele que o precedeu, com a verdadeira e grande civilização ocidental. O Ocidente moderno é tão oposto ao Oriente como o é ao antigo Ocidente. Ao voltar para um passado remoto, vemos um patrimônio étnico e cultural largamente comum, e que corresponde logo a uma única denominação “indo-européia”.

As formas originais de vida e de espiritualidade, das instituições dos primeiros colonizadores da Índia e do Irã, tinham muitos pontos de contacto com aqueles povos helênicos e nórdicos, mas também com os antigos Romanos.

Agora vamos abordar as tradições que nos dão um exemplo das afinidades de concepções espirituais comuns, de combate, de ação e de morte heróica, contrariamente à idéia preconcebida surgida sempre que falamos da civilização hindu, quando só pensamos em nirvana, faquires, evasão do mundo, negação dos valores “ocidentais”, da personalidade, etc.

O Bhagavad-Guita foi sob a forma de diálogo, entre o guerreiro Arjuna e um Deus, Krishna, seu mestre espiritual. O diálogo tem lugar durante uma batalha em que Arjuna hesita em combater, freado por seus escrúpulos humanitários. Interpretadas em chaves de espiritualidade, as duas figuras, Arjuna e Krishna, representam as duas partes do ser humano: Arjuna o principio da ação, Krishna o principio do conhecimento transcendente. O diálogo transforma-se numa espécie de monólogo, primeiro de clarificação interior, depois resolução heróica enquanto espiritual do problema da ação guerreira, que se impõe a Arjuna, no momento de entrar no campo de batalha.

Ora, a compaixão que detém o guerreiro, no momento de combater, quando este descobre no campo inimigo os amigos de jogos e alguns de seus parentes, é qualificada por Krishna ( principio espiritual), de “desordem indigna dos Aryas, que fecha o céu e preenche de vergonha” (B.G.II,2 B). Assim retornamos ao tema que já encontramos muitas vezes, nos ensinamentos tradicionais do Ocidente: “ morto, tu ganharás o céu; vencedor, tu possuirás a terra. Levanta-te então, filho de Kunti, para combater” (op.cit., II,37). Ao mesmo tempo se desenha o tema de uma “guerra interior”, guerra que é preciso travar consigo mesmo: “sabendo logo que a razão é a mais forte, afirma-te a ti mesmo; e destrói o inimigo de formas escusas e de abordagem difícil”. (op.cit.,III,43). O inimigo exterior tem, ao lado do inimigo interior, que é a paixão, a sede animal de viver. Vejamos como é definida a justa orientação: “ abandona em mim todas as tuas ações, pensa na Alma suprema, torna-te livre de ti mesmo, combate e teus tormentos irão desaparecer”. Op.cit.,III,30).

Devemos perceber o apelo a uma lucidez, supra consciente e supra passional do heroísmo, assim como não devemos negligenciar esta passagem que sublinha o caráter de pureza, do absoluto que deve ter uma ação e o que ela pode ter em termos de “guerra santa”: “ Tem por igual prazer e pena, ganho e perda, vitória e derrota, e entrega-te inteiramente à batalha: assim evitarás o pecado” (op.cit.,II,38). Assim se coloca a idéia de “pecado”, no que se refere apenas ao estado de vontade incompleto e de ação, interiormente ainda afastada da elevação, na qual a vida significa tão pouco, a sua como a dos outros, e onde nenhuma medida humana possui qualquer lugar.

Se ficarmos neste plano, este texto oferece-nos considerações de ordem absolutamente metafísica, visando mostrar como, num tal nível, acaba por agir sobre o guerreiro uma força mais divina que humana. O ensinamento que Krishna (principio do “conhecimento”) dispensa a Arjuna (principio da “ação”) para acabar com as suas hesitações, visa sobretudo realizar a distinção entre o que é incorruptível como espiritualidade absoluta, e aquilo que existe somente duma maneira ilusória como elemento humano e natural: “Sabemos que o não Ser não tem existência, sabemos também que o Ser nunca deixa de existir (…) Mas saibam que em tudo que isto for penetrado, é indestrutível, (…) aquele que crê que mata e aquele que crê que é morto, estes dois se enganam; nem este mata nem aquele morre (…) não está morto quando o corpo está morto (…) É por isso que combatas, oh Filhos de Bharata! “ (op.cit.,II,16,17,19,20 e 18).

Mas não é tudo. A consciência da irrealidade metafísica daquilo que perdemos, ou fazemos perder, como vida caduca e corpo mortal (consciência que tem seu equivalente numa das tradições que nós já examinamos antes, onde a existência humana é definida como “ jogo e frivolidade”), se associa à idéia que o espírito, no seu absoluto, em sua transcendência diante tudo aquilo que é limitado e incapaz de ultrapassar este limite, não pode aparecer senão como uma força destruidora. Por isso se coloca o problema de ver em quais termos, dentro do ser, instrumento necessário de destruição e de morte, pode o guerreiro evocar o espírito, justamente sob esse aspecto, ao ponto de com ele se identificar. O Bhagavad-Guita assim diz exatamente. Não somente o Deus declara: “Eu sou a virtude dos fortes quando ela é isenta de paixão e de desejo; (…) eu sou o esplendor do fogo; (…) eu sou a vida em todos os seres e o ardor da mortificação dos ascetas; (…) eu sou a inteligência dos sábios, a majestade dos poderosos” (op.VII,11,9,10).

Pois o Deus que Se manifesta a Arjuna sob uma forma transcendente, terrível e fulgurante, e oferece-Lhe uma visão absoluta da vida: tal como lâmpadas submetidas a uma luz muito intensa, com circuito investidos de potência elevada demais, os seres vivos caiem trespassados porque dentro deles queima uma força que transcende a própria perfeição, que vai além de tudo o que eles podem ou almejam. Por causa disto que eles atingem um cume, e como levados por ondas às quais se tinham abandonado e que os levava até um certo ponto, eles arriscam, dissolvem-se, morrem e retornam ao não-manifestado. Mas aquele que não teme a morte, sabe assumir a sua própria morte, passando por lá tudo o que o destrói, engole, quebra, ele acaba por atravessar o limite, consegue manter-se na crista das ondas, não se enterra, ao contrário, aquilo que está além da vida nele é manifestado. É assim que Krishna, a personificação do “principio do espírito”, depois de se ter revelado na sua totalidade a Arjuna, pode dizer: “mesmo sem ti, todos estes guerreiros apresentados nas armadas inimigas vão perecer … Então levanta-te, conquista a tua glória; triunfa sob teus inimigos e adquire um vasto império. Eu já assegurei a derrota deles; sê somente um instrumento, mata-os. Não fiques perturbado; combate e vencerás teus rivais. “ (op.cit., XI,32,33,34).

Portanto encontramos assim a identificação da guerra com o “ caminho de Deus”, como já falamos nas páginas anteriores. O guerreiro cessa de agir enquanto pessoa. Uma grande força, não-humana, transfigura a ação, a torna absoluta e pura, precisamente no momento onde ela deve ser extrema. Vejamos uma imagem muito eloqüente e que pertence a esta tradição: “A vida é como um arco; a alma é como uma flecha; o espírito absoluto o alvo a atingir. Unir-se a este espírito como a flecha disparada se agarra ao alvo”. Esta imagem é uma das mais fortes formas de justificação metafísica da guerra, uma das imagens mais completa da guerra como “guerra santa”.

Para terminar este trabalho das formas de tradição heróica, tal como nos foi apresentado por povos e épocas tão diversas, acrescentaremos ainda algumas palavras de conclusão.

Esta excursão num mundo que pode parecer insólito a alguns e nada tendo a ver com o nosso mundo, nós não o fizemos por curiosidade nem para exibir nossa erudição. Nós o fizemos, pelo contrário, no intuito preciso de demonstrar o sagrado da guerra, pois a possibilidade de justificar a guerra espiritualmente e a sua necessidade, constitui, no senso mais alto do termo, uma tradição. É algo que sempre esteve e sempre se manifestou no ciclo ascendente de todas as grandes civilizações. Porquanto a neurose da guerra, as propagandas humanitárias e pacifistas, as concessões feitas à guerra como “mal necessário”, e fenômeno político ou natural – tudo isto não corresponde a nenhuma tradição, não é mais que uma invenção moderna, recente, a par da decomposição que caracteriza a civilização democrática e materialista, contra a qual se afirmam novas forças revolucionárias.

Neste sentido, tudo aquilo que recolhemos, de fontes tão diversas e com o cuidado constante de separar o essencial do contingente, o espírito da palavra, possam servir a um conforto interior, a uma confirmação, a uma certeza aumentada. Não somente o instinto viril é justificado em termos superiores, mas também a possibilidade de discernir as formas da experiência heróica que correspondem à nossa mais alta vocação, e se desvenda bruscamente.

Agora devemos retornar àquilo que escrevemos no inicio deste estudo, demonstrando que há várias maneiras de ser “herói”, (ver animal e sub-pessoal). Ou seja, o que conta não é tanto a possibilidade vulgar de se lançar numa batalha e de se sacrificar, mas sim o espírito segundo o qual podemos viver uma aventura deste gênero. Agora temos todos os elementos para escolher, entre diferentes aspectos da experiência heróica, aquele que possamos considerar absoluto, aquele que possa verdadeiramente identificar a guerra com o “caminho de Deus”, e dentro do herói, possa realmente, deixar entrever uma manifestação divina.


Mas também, devemos recordar que, quando dizemos que o ponto onde a vocação guerreira atinja realmente um valor metafísico, refletindo a plenitude universal, dentro de uma raça, só pode tender a uma manifestação e a uma finalidade igualmente universais, o que significa: só se pode predestinar esta raça a um império. Pois somente o império, tal uma ordem superior onde reine a paz triumphalis, reflexo terrestre da soberania do “supra-mundo”, pode ser comparável às forças, que dentro do domínio do espírito, manifestam as mesmas características de pureza, de força, de transcendência em relação a tudo que é pathos, paixão e limites humanos, e que se refletem nas grandes e livres energias da natureza.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Significado das Cruzadas


por Julius Evola

Cap. III de Metafísica da Guerra


Trataremos outra vez das formas da tradição heróica que permitem à guerra assumir o valor de um caminho de realização espiritual, no sentido mais rigoroso do termo, e também de uma justificação e de finalidade transcendental. Já falamos das concepções que, sob este ponto de vista, foram as do antigo mundo romano. Depois olhamos as tradições nórdicas e o caráter imortal de toda a morte realmente heróica no campo de batalha. Referimo-nos necessariamente a estas concepções para chegar ao mundo medieval, à Idade Média como civilização resultante da síntese de três elementos: primeiro romano, depois o nórdico e finalmente o cristão.

Examinaremos agora o ideal de sacralidade da guerra, tal como foi concebido e cultivado ao longo da Idade Média. Evidentemente devemos nos referir às Cruzadas, presos ao seu significado mais profundo, sem as reduzi-las aos determinismos econômicos e étnicos, como os historiadores materialistas, e muito menos reduzi-las a um fenômeno de superstição e de exaltação religiosa, como desejam os espíritos “evoluídos”, enfim, nem mesmo a um fenômeno simplesmente cristão. Sobre este último ponto não devemos perder de vista a relação estreita entre meio e fim. Diz-se que nas Cruzadas a fé cristã se serviu do espírito heróico da cavalaria ocidental. É precisamente o contrário que é verdadeiro. A fé cristã e seus fins relativos e contingentes de luta religiosa contra o “infiel”, da “Libertação do Templo” e da “Terra Santa”, não foram mais que os meios que permitiram a manifestação do espírito heróico, de se afirmar e de se realizar numa espécie de ascese, distinto da contemplação, mas não menos rica em frutos espirituais. A maioria dos cavaleiros que entregaram suas forças deram o sangue pela “guerra santa” não tinham mais que uma idéia e um vago conhecimento teológico sobre a doutrina pela qual combatiam.

Entretanto, o contexto das Cruzadas era rico em elementos susceptíveis para fornecer um significado simbólico, espiritual e superior. Através das vias do subconsciente, os mitos transcendentais refloresciam na alma da cavalaria ocidental: a conquista da “Terra Santa”, situada “além dos mares”, apresenta infinitamente mais referências reais que poderiam supor os historiadores com a antiga saga segundo a qual “no longínquo Oriente onde nasce o sol, se encontra a cidade sagrada onde a morte não reina, mas onde os valorosos heróis que sabem esperá-la gozam de uma celestial serenidade e de uma vida eterna”. Por outro lado, a luta contra o Islam revestiu, por sua natureza, desde o princípio, o significado de uma luta ascética. “Não se trata de combater pelos reinos da terra – escreveu Kluger, célebre historiador das Cruzadas – mas pelo reino dos céus; as Cruzadas não eram do domínio dos homens, mas sim de Deus – por isso não as podemos considerar semelhantes a outros acontecimentos humanos”. A guerra santa devia, segundo a expressão de um antigo cronista, comparar-se “com o batismo semelhante ao fogo do purgatório antes da morte”. Os papas e os pregadores comparavam simbolicamente aqueles que morriam nas cruzadas com o “ouro três vezes ensaiado e sete vezes purificado pelo fogo” e que podia conduzir ao Deus Supremo. “Não esqueçais jamais este oráculo – escreveu São Bernardo – quer vivamos, quer morramos, ao Senhor pertencemos. Que Glória para vós sair da batalha cobertos de louros. Mas que alegria maior para vós, de ganhar sobre o campo de batalha uma coroa imortal … oh, condição afortunada! Poder enfrentar a morte sem temor, mesmo desejá-la com impaciência, e recebê-la com de coração firme”. A glória absoluta estava prometida ao cruzado – glória asolue - em provençal – pois, à parte da imagem religiosa lhe oferecia a conquista da supravida, do estado sobrenatural da existência. Assim, Jerusalém, fim cobiçado da conquista, apresentava-se sob o duplo aspecto, duma cidade terrestre e duma cidade simbólica, a Cruzada tomava um valor interior, independente de todos os seus aparatos, seus suportes e suas motivações aparentes.

Afinal, foram as ordens da Cavalaria quem ofereceram o maior tributo às Cruzadas, com a Ordem do Templo e a dos Cavaleiros de São João de Jerusalém, compostas por homens que, como o monge ou asceta cristão “aprenderam a desprezar a vaidade desta vida; em tais ordens encontravam-se guerreiros fatigados pelo mundo, que tudo tinham visto e tudo tinham provado”, prontos a uma ação total e que não sustentavam mais nenhum interesse pela vida material e temporal nem pela política ordinária, no sentido mais estrito. Urbano II dirigia-se à cavalaria como à comunidade supranacional daqueles “dispostos a partir até onde rebentasse uma guerra, a fim de levar o terror das suas armas para defender a honra e a justiça” … com mais razão deviam escutar e atender ao apelo da “Guerra Santa”, guerra que, segundo um dos escritores da época, não tinha por recompensa um feudo terrestre, revogável e contingente, mas um “feudo celestial”.

Mas o desenrolar das Cruzadas, num contexto mais amplo e no plano ideológico geral, provocou uma purificação e uma interiorização do espírito de iniciativa. Segundo a convicção inicial de que a guerra pela “verdadeira” fé não podia ter mais que uma saída vitoriosa, os primeiros fracassos militares sofridos pelos exércitos cruzados foram um foco de surpresas e assombro, mas à posteriori serviram, contudo, para trazer à luz o aspecto mais elevado da “guerra santa”. O resultado desastroso de uma Cruzada era comparado pelos clérigos de Roma ao destino da virtude desgraçada que não é julgada nem recompensada, a não ser em função da outra vida. E isto anunciava o reconhecimento de algo superior tanto na vitória como na derrota, a colocação no primeiro plano do aspecto próprio à ação heróica cumprida independentemente dos frutos visíveis e materiais, quase como uma oferenda transformando o holocausto viril de toda a parte humana em “glória absoluta” e imortal.

É evidente que desta maneira se devia acabar por atingir um plano, por assim dizer, supratradicional, tomando a palavra “tradição” num sentido mais restrito, mais histórico e religioso. A fé religiosa em particular, os fins imediatos, o espírito antagonista, convertiam-se então em elementos tão contingentes como a natureza variável de um combustível destinado somente a produzir e a alimentar uma chama. O ponto central continuava a ser o valor santo da guerra. Mas se prefigurava igualmente a possibilidade de reconhecer, que aqueles que eram adversários no momento, pareciam atribuir a este combate o mesmo significado tradicional.

Este é um dos elementos graças ao qual as Cruzadas serviram, apesar de tudo, para facilitar o intercâmbio cultural entre o Ocidente gibelino e o Oriente árabe (ponto de reencontro, por sua vez, de elementos tradicionais ainda mais antigos), mas o alcance disso vai muito além do que a maioria dos historiadores demonstraram até ao presente. Da mesma forma, as ordens de cavalaria das cruzadas, se encontraram diante das ordens de cavalaria árabes, que lhes eram quase análogas no plano da ética, por vezes mesmo dos símbolos, e por isso a “guerra santa” que havia motivado as duas civilizações, uma contra a outra em nome das suas religiões respectivas, permitiu igualmente o seu reencontro e que, partindo de duas crenças diferentes, cada uma acabou por dar à guerra um valor de espiritualidade análogo e independente. É afinal aquilo que se sobressai, quando estudarmos como, forte na sua fé, o antigo cavaleiro árabe se eleva ao mesmo nível supratradicional que o cavaleiro cruzado pelo seu ascetismo heróico.

Agora, este é outro ponto que queremos aflorar. Aqueles que julgam as Cruzadas superficialmente, as remetem a um dos episódios mais extravagantes da “obscura” Idade Média, não supõem que o que definem como “fanatismo religioso” é a prova tangível da presença e da eficácia de uma sensibilidade e de um tipo de decisão cuja ausência caracterizava a barbárie autêntica. Já que o homem das Cruzadas sabia todavia afirmar-se, combater e morrer por um ideal, que era essencialmente suprapolítico e suprahumano. Associava-se também a uma união baseada, não sobre o particular, mas sobre o universal. E isto significa um valor, um ponto de referência inabalável.


Naturalmente não se deve confundir nem pensar que a motivação transcendente possa ser uma desculpa para tornar o guerreiro indiferente, para torná-lo negligente aos deveres inerentes à sua fidelidade a uma raça e a uma pátria. Não é bem assim. Pelo contrário, trata-se essencialmente de significados profundamente diferentes, segundo os quais ações e sacrifícios podem ser vencidos, embora observados do exterior, possam parecer absolutamente os mesmos. Existe uma diferença radical entre quem faz simplesmente a guerra, e quem pelo contrário, na guerra faz também a “guerra santa” e vive uma experiência superior, desejada e desejável para o espírito.

É preciso acrescentar que, se esta diferença é, antes de tudo interior e sob o impulso de tudo o que interiormente tem uma força, traduz-se também no exterior, provocando efeitos sobre outros planos e particularmente nos seguintes termos: antes de tudo, termos uma “irredutibilidade” do impulso heróico: quem vive espiritualmente o heroísmo está carregado de uma tensão metafísica, animado por um estimulo cujo objetivo é “infinito”, e superará sempre aquilo que anima quem combate por necessidade, por oficio ou sob impulsos naturais ou sugestões.

Em segundo lugar, quem combate numa “guerra santa” situa-se espontaneamente além de todo o particularismo, vive num clima espiritual que, num determinado momento, pode muito bem dar origem a uma unidade supranacional dentro da ação. É justamente isso que ocorreu nas Cruzadas, quando príncipes e chefes de todos os países se uniram para a expedição heróica e santa, para além dos seus interesses particulares e utilitários e das divisões políticas, realizando pela primeira vez uma grande unidade européia conforme a sua civilização comum e ao próprio princípio do Sacro Império Romano-Germânico.

Se soubermos abandonar o “pretexto”, se soubermos isolar o essencial do contingente, encontraremos um elemento precioso que não se limita a um período histórico determinado. Conseguir conduzir a ação heróica sobre um plano “ascético”, justificá-la também em função desse plano, significa desimpedir o caminho para uma nova e possível unidade de civilização. Isto também significa separar todo o antagonismo condicionado pela matéria, preparar o espaço das grandes distâncias e as amplas frentes, para dimensionar, pouco a pouco, os objetivos externos da ação em seu novo significado espiritual: tal como se verifica quando não é só por um país ou por ambições temporais que se combate, mas em nome de um princípio superior de civilização, de uma tentativa que por ser metafísica nos faz ir adiante, além de todo limite, além de todos os perigos e além de qualquer destruição.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A Sacralidade da Guerra


por Julius Evola .

Cap. II de Metafísica da Guerra



Acabamos de ver como o fenômeno do heroísmo guerreiro pode revestir várias formas e obedecer a diferentes significados, uma vez já definidos os valores da autêntica espiritualidade que o diferenciam profundamente. Por enquanto, começaremos com o exame de certos conceitos relativos às antigas tradições romanas. Geralmente, não há nada além de um conceito laico do valor da romanidade antiga. O romano não foi mais que um soldado no sentido estrito da palavra, e graças às suas virtudes militares, unidas a uma feliz concorrência de circunstâncias, pôde conquistar o mundo. Opinião equivocada, não importa de quem seja.

Antes de tudo, o romano alimentava a intima convicção de que Roma, seu “Imperium” e sua “Aeternitas”, eram derivados de forças divinas. Para considerar esta convicção romana, sob um aspecto exclusivamente “positivo”, é preciso substituir esta crença por um mistério: mistério de como um punhado de homens, sem nenhuma necessidade de “terra” ou “pátria”, sem estarem possuídos por nenhum destes mitos ou paixões, que tanto atraem os modernos e com as quais justificam a guerra e promovem ações heróicas, mas sob um estranho e irresistível impulso, este mistério arrastava os romanos, cada vez mais longe, de país em país, reduzindo tudo a uma “ascese de poder”. Segundo testemunhos de todos os clássicos, os primeiros romanos eram muito religiosos – “nostri maiores religiosissimi mortales” – relembra Salústio e repetem Cícero e Aulo Gélio, mas esta religiosidade não se limitava a uma esfera abstrata e isolada, espalhava-se na prática, no mundo da ação e por conseqüência, abarcava também a experiência guerreira.

Um colégio sagrado formado pelos “Fetiales” presidia em Roma a um sistema bem determinado de ritos, que eram o lado místico de qualquer guerra, desde a sua declaração até a sua conclusão. No geral, é certo que um dos princípios da arte militar romana era evitar travar batalhas antes que os signos místicos tivessem, por assim dizer, indicado o “momento”.

Com as deformações e preconceitos da educação moderna não se quererá ver nisto mais que uma super estrutura extrínseca feita à base de superstições. Quanto aos mais benévolos, não será nada mais que um fatalismo extravagante. Mas não era nem uma coisa nem outra. A essência da arte de adivinhação praticada pelo patriciado romano, assim como outras disciplinas análogas de caráter mais ou menos idêntico no ciclo das grandes civilizações indo-européias, não era descobrir o “destino” na base de uma supersticiosa passividade. Pelo contrario, era descobrir antecipadamente os pontos de conjugação com influências invisíveis, para concentrar as forças dos homens e torná-las mais poderosas, de multiplicá-las e as induzir a atuar sobre um plano superior, com o fim de varrer - quando a concordância era perfeita - todos os obstáculos e resistências no plano material e espiritual. É difícil pois, a partir disso, duvidar do valor romano, a ascese romana de potência não era só na sua contrapartida espiritual e sacra, instrumento da grandeza militar e temporal, mas também num contacto e uma união com as forças superiores.

Se fosse oportuno, poderíamos citar farta documentação para fundamentar esta tese. No entanto, nos limitaremos a recordar que a cerimônia do triunfo tinha em Roma um caráter muito mais religioso que laico-militar, e numerosos elementos permitem deduzir que o Romano atribuía a vitoria dos seus “duces” mais a uma força transcendente, que se manifestava real e eficazmente através deles, no seu heroísmo e inclusive por meio do seu sacrifício (como no rito da “devotio” no qual os chefes se imolavam), que a suas qualidades simplesmente humanas. Desta forma, o vencedor, revestindo as insígnias do Deus capitolino supremo, se identificava com ele, era sua imagem, e depositava nas mãos deste Deus, os louros da sua vitória, em homenagem ao verdadeiro vencedor.

No fundo, uma das origens da apoteose imperial, era o sentimento que debaixo da aparência do Imperador se escondia um “numen” imortal, incontestavelmente derivado da experiência guerreira: O “Imperatore”, originariamente era o chefe militar aclamado sobre o campo de batalha, no momento da vitória, mas nesse instante aparecia também como transfigurado por uma força vinda do alto, terrível e maravilhosa que dava a impressão do “numen”. Esta concepção, por outro lado, não é exclusivamente romana, encontra-se em toda a antiguidade clássico-mediterrânea e não se limitava aos generais vencedores, estendia-se aos campeões olímpicos e aos sobreviventes dos combates sangrentos do circo. Na Grécia, o mito dos Heróis confunde-se com as doutrinas místicas, como o orfismo, e identifica o guerreiro vencedor como o iniciado, vencedor da morte. Testemunhos precisos sobre um heroísmo e um valor que emanavam, mais ou menos conscientemente, das vias espirituais, abençoados não só pelas conquistas materiais e gloriosas, mas também pelo seu aspecto de evocação ritual e de conquista espiritual.

Passemos a outros testemunhos desta tradição que, pela sua natureza é metafísica e, como conseqüência, o elemento “raça” não pode ter mais que uma parte secundária e contingente. Portanto, mais adiante, trataremos da “Guerra Santa” praticada no mundo guerreiro do Sacro Império Romano-Germânico. Esta civilização apresentava-se como um ponto de confluência criadora de vários elementos: um romano, um cristão e um nórdico.

Com relação ao primeiro elemento, já fizemos alusão a ele no contexto que nos interessa. O elemento cristão se manifestara sob as características de um heroísmo cavalheiresco supranacional com as cruzadas. Nos sobra o elemento nórdico. Para que ninguém se espante, assinalamos que se trata de um caráter essencialmente supra-racial, incapaz de valorizar ou denegrir um povo em relação a outro. Para fazer alusão a um plano no qual nos auto excluímos, de momento nos limitaremos a dizer que nas evocações nórdicas, mais ou menos frenéticas celebradas hoje em dia “ad usum delphini” na Alemanha nazista, por surpreendente que possa parecer, se assiste a uma deformação e a uma depreciação das autênticas tradições nórdicas tal como foram originariamente e tal como se perpetuaram nos Príncipes que tinham por grande honra o poder de se denominarem “romanos” ainda que fosse de raça teutônica. Pelo contrário, para numerosos escritores “racistas” de hoje, “nórdico” não significa nada além de “anti-romano” e “romano” tem mais ou menos um significado equivalente a “judeu”.

Portanto, é interessante reproduzir uma significativa forma guerreira da tradição celta: “combatei por vossa terra e aceitai a morte se for preciso: pois a morte é uma vitória e uma liberação da alma”. Este conceito corresponde, em nossas tradições clássicas, à expressão “mors triumphalis”. Quanto à tradição realmente nórdica, ninguém ignora a parte do Walhalla, reino imortal reservado, não apenas aos “homens livres” de fonte divina, mas também aos Heróis mortos no campo de honra (Walhalla significa literalmente “o reino dos eleitos”). O Senhor deste lugar simbólico é Odin-Wotan, conforme descrito na Ynglingasaga, como aquele que, pelo seu sacrifício simbólico na “árvore do mundo”, indicou aos Heróis um modo de esperar o descanso divino, um lugar em que se vive eternamente sobre um cume luminoso e resplandecente, além das nuvens. Segundo esta tradição, nenhum sacrifício, nenhum culto, é tão grato a Deus, nem mais rico em recompensa no outro mundo, como aquele realizado pelo guerreiro que combate e morre na luta. Além do mais: o exército dos heróis mortos em combate deve reforçar a falange dos “heróis celestes” que lutam contra o ragna-rökkr, ou seja, contra o destino do “obscurecimento do divino” que, segundo os ensinamentos, como no caso dos clássicos gregos, (Hesíodo) está sobre o mundo desde as eras mais remotas.

Encontramos este tema sobre formas diferentes nas lendas medievais que concernem à “última batalha” que livrará o Imperador imortal. Neste ponto, para perceber o elemento universal, temos que trazer à luz a concordância de antigos conceitos nórdicos (que, diga-se de passagem, Wagner desfigurou com o seu romantismo empolgado, confuso e teutônico) com as antigas concepções iranianas e persas. Alguns se surpreenderão ao saber que as famosas Walkirias não são quem escolhe as almas dos guerreiros destinados ao Walhalla, mas sim a personificação da parte transcendente destes guerreiros, que tem como equivalentes exatas as fravashi, que na tradição persa são representadas como mulheres de luz e virgens arrebatadas das batalhas. Personificam mais ou menos as forças sobrenaturais em que as forças humanas dos guerreiros ”fiéis ao Deus da Luz” podem transfigurar e produzir um efeito terrível e turbulento nas ações sangrentas. A tradição iraniana continha igualmente a concepção simbólica de uma figura divina - Mitra, concebido como o “guerreiro sem sono” - que à frente das fravashi de seus fiéis, combate contra os emissários do deus das trevas, até a aparição do Saoshyant, senhor de um reino futuro, de “paz triunfal”.

Estes elementos da antiga tradição indo-européia repetem sempre os temas da sacralidade da guerra e do herói que na verdade não morre, mas que passa a ser soldado de um exército místico numa luta cósmica, interferindo visivelmente com os elementos do cristianismo: pelo menos do cristianismo que pode assumir o lema ”Vita est militia super terram” e reconhecer que não é apenas com a humildade, caridade, esperança e tudo mais que se alcança o “Reino dos Céus”, mas que também é possível alcançá-lo com certa violência – a afirmação heróica. É precisamente desta convergência de temas que nasceu a concepção espiritual da “Grande Guerra” própria das Cruzadas da Idade Média e que analisaremos debruçados especialmente sobre o aspecto interior individual destes ensinamentos, que sempre são atuais.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Sobre as formas do heroísmo guerreiro


Por Julius Evola

Cap. I de Metafísica da Guerra


O princípio geral para o qual seria possível apelar para justificar a guerra sobre o plano humano é o “heroísmo”. A guerra, segundo este princípio, oferece ao homem a ocasião de acordar o herói adormecido em si. Ela rompe a rotina da vida cômoda e através das mais duras provas, favorece um conhecimento transcendente da vida em função da morte. O instante no qual o individuo deve comportar-se como um herói, seja ele o último da sua vida terrestre, pesa infinitamente mais na balança que toda a sua existência vivida monotonamente, na agitação inquieta das cidades. Isto é o que compensa, em termos espirituais, os aspectos negativos e destrutivos da guerra, aspectos que o materialismo pacifista coloca unilateral e tendenciosamente em destaque. A guerra, ao estabelecer e realizar a relatividade da vida humana, estabelece e realiza também o direito de algo “além da vida” – pois sempre tem sempre um valor anti-materialista e espiritual.
Estas considerações têm um peso indiscutível e reduzem todas as demagogias do humanitarismo, os lamentos dos sentimentalistas e os protestos dos paladinos dos “imortais princípios” e da Internacional dos “heróis da pluma”. Contudo, é preciso reconhecer que para definir corretamente as condições pelas quais a guerra se apresenta realmente como fenômeno espiritual, deve-se proceder a um exame posterior, para esboçar uma espécie de “fenomenologia da experiência guerreira” e distinguir as diferentes formas e hierarquizá-las, para dar toda a importância ao ponto absoluto que servirá de referência à experiência heróica.

Para isso, é preciso recorrer a uma doutrina que não tenha uma estrutura de construção filosófica particular e pessoal, mas que, a sua maneira, tenha uma referência de fato positiva e objetiva. Trata-se da doutrina quaternária de divisão histórica e hierárquica, como também da história atual como uma decadência retroativa de um a outro desses graus hierárquicos. A divisão quaternária, em todas as civilizações tradicionais - sem dúvida alguma - deu origem a quatro castas diferentes: servos, burgueses, aristocracia guerreira e líderes da autoridade espiritual. Neste ponto, não devemos entender por casta – como faz a maioria – uma divisão artificial e arbitrária, mas sim um “laço” que reúne uma mesma natureza, um tipo de interesse e vocação idêntica, uma qualificação original idêntica. Normalmente, uma verdade e uma função determinada definem cada casta e não o contrário. Não se trata de privilégios e de formas de vida fundadas num monopólio e baseadas numa constituição social mantida, mais ou menos, artificialmente. O verdadeiro princípio que fundamenta estas instituições, segundo formas históricas mais ou menos perfeitas, é que não existe um modo único e genérico de viver a sua própria vida, a não ser o modo espiritual, quer dizer, como guerreiro, burguês, servo e, quando as funções e repartições sociais correspondem verdadeiramente a esta articulação, segundo a expressão clássica, estamos perante uma organização ”proveniente da verdade e da justiça”.

Esta organização converte-se em hierárquica quando implica uma dependência natural – e com a dependência a participação – de modos inferiores de vida, àqueles que são superiores, considerando como superior toda a personalização de um ponto de vista puramente espiritual. Somente neste caso há relações claras e normais de participação e subordinação, conforme o ilustra a analogia oferecida pelo corpo humano: ali onde não há condições sãs e normais, quando o elemento físico (servos) ou a vida vegetativa (burguês), ou a vontade impulsiva e não controlada (guerreiros), assumem a direção ou a decisão na vida do homem,surge o caos; mas quando o espírito constitui o ponto central e ultimo de referência para as faculdades restantes, às quais não lhes é negada uma autonomia parcial, uma vida própria e um direito auferido dentro do conjunto da unidade, aí está a ordem.

Mas não devemos falar genericamente de hierarquia, pois aqui tratamos da “verdadeira” hierarquia, na qual quem está no alto e dirige é verdadeiramente superior, é preciso fazer referência aos sistemas de civilização baseados numa elite espiritual e onde os modos de viver do servo, do burguês e do guerreiro buscam inspiração neste principio para justificar as atividades em manifestadas materialmente. Pelo contrário, estamos num estado anormal, quando o centro se deslocou e o ponto de referência não é o princípio espiritual mas sim o da classe servil, burguesa ou simplesmente guerreira. Em cada um dos casos, também há hierarquia e participação, mas não é algo natural. Ela é deformada, subversiva e acabar por ultrapassar todos os limites, transformando-se num sistema onde a visão da vida, própria de um servo, orienta e sustenta todos os elementos do conjunto social.

No plano político, este processo de degeneração é particularmente perceptível na história do Ocidente atual. Os Estados sacro-aristocráticos foram substituídos por Estados monárquicos-guerreiros, amplamente secularizados e estes, por sua vez, foram substituídos e ultrapassados por Estados fundamentados em oligarquias capitalistas (castas dos burgueses e mercadores) e finalmente por tendências socialistas, coletivistas e proletárias, que atingiram seu apogeu no bolchevismo russo (casta dos servos).

Este processo é paralelo à troca de um tipo de civilização por outra, de um significado fundamental da existência a outro, apesar de que, em cada fase particular destes conceitos, cada princípio e cada instituição receba um sentido diferente, conforme a parte predominante.

Isto é igualmente válido para a “guerra”. E é assim que vamos poder abordar positivamente a tarefa que nos propusemos no início deste ensaio: especificar os diversos significados que a morte e o combate heróico podem assumir. Conforme manifestada sob o signo de uma ou outra casta, a guerra adquire um aspecto diferente. Ou seja, dentro do ciclo da primeira casta, a guerra é justificável por motivos espirituais, é considerada uma via de realização sobrenatural e de imortalidade para o herói (tema da Guerra Santa). Nas aristocracias guerreiras, luta-se pela honra e por um princípio de lealdade, que se associa ao prazer da guerra pela guerra. Com a passagem do poder para as mãos da burguesia dá-se uma profunda transformação, o conceito de nação materializa-se e se democratiza; cria-se uma concepção anti-aristocrática e natural da pátria e o guerreiro dá lugar ao soldado e ao “cidadão”; que luta simplesmente para defender ou conquistar uma terra; com os guerreiros, quase sempre, fraudulentamente guiados por razões ou primazias de ordem econômica ou industrial. Por fim, onde o ultimo estado pode ser alcançado abertamente, é numa organização nas mãos de servos, expressada perfeitamente por Lênin: “A guerra entre nações é um jogo pueril, uma subserviência burguesa que não nos pertence. A verdadeira guerra, a nossa guerra, é a revolução mundial para destruição da burguesia, e o triunfo da classe proletária”.

Com isso esclarecido, é evidente que o “herói” pode ser um denominador comum que abarca as formas e significados mais variados. Morrer, sacrificar a vida, pode ser válido somente no plano técnico e coletivo, melhor dizendo, no plano hoje chamado brutalmente de “material humano”. É evidente que não é em tal plano que a guerra pode reivindicar um autêntico valor espiritual para o indivíduo, quando este se apresenta não como “material”, mas sim – à maneira romana – como personalidade. Isto não se realiza apenas quando há uma relação dupla entre meio e fim, mas também quando o individuo é um meio em relação à guerra e aos seus fins materiais, mas simultaneamente, quando a guerra, por sua vez, transforma-se num meio em relação ao individuo, oportunidade ou via cujo fim seja a sua realização espiritual, favorecida pela experiência heróica. Neste caso há síntese, energia e máxima eficácia.

Nesta ordem de idéias, e em função do que dissemos anteriormente, é evidente que todas as guerras não nos oferecem as mesmas possibilidades. E isto em função de analogias, absolutamente abstratas, embora positivamente ativas, segundo os caminhos, invisíveis para a maioria, que existe entre o caráter coletivo predominante nos diferentes ciclos de civilização e o elemento que corresponde a este caráter no todo da entidade humana. Se a era dos mercadores e servos é aquela na qual predominam as forças correspondentes às energias que definem no homem o elemento pré-pessoal, físico, instintivo, telúrico ou simplesmente orgânico-vital, na era dos guerreiros, na dos chefes espirituais são expressadas forças que correspondem respectivamente no homem ao caráter e à personalidade espiritualizada, realizada segundo o seu destino sobrenatural. De acordo com o que desenvolve o transcendente no indivíduo, é evidente que numa guerra, a maioria não pode mais que sentir coletivamente o despertar correspondente, mais ou menos, com a influência preponderante, ainda que dependa também das causas que pesaram na declaração de tal guerra. Em função de cada caso, a experiência heróica conduz a diversos pontos e sobretudo a “três” formas.

No fundo, correspondem às três possibilidades de relação que podemos verificar pela casta guerreira e seu princípio em relação às outras articulações já examinadas. Pode-se verificar o estado normal de uma subordinação ao princípio espiritual, onde o heroísmo como desencadeamento conduz à supravida e à suprapersonalidade. Mas o princípio guerreiro pode ser um fim em si mesmo, rejeitando admitir aquilo que há de superior nele, neste caso a experiência heróica dá lugar a um tipo “trágico”, arrogante e temperado como o aço, mas sem luz. A personalidade permanece – está inclusive reforçada – como lhe ordena o limite do seu lado naturalista e humano. Este tipo de herói sempre oferece certa garantia de grandeza e naturalmente, para os tipos hierarquicamente inferiores, “burgueses” ou “servos”, este heroísmo e esta guerra significa superação, elevação e realização. O terceiro caso se refere ao princípio guerreiro degenerado, ao serviço de elementos hierarquicamente inferiores (última casta). Aqui a experiência heróica se associa quase fatalmente a uma evocação, um desencadeamento de forças instintivas, pessoais, coletivistas, irracionais, provocando finalmente uma lesão e uma regressão na personalidade do indivíduo, o qual, rebaixado a tal nível, está condicionado a viver a situação da forma passiva ou sob a sugestão de mitos e impulsos passionais. Por exemplo, os romances de Eric Maria Remarque não refletem mais que uma possibilidade deste gênero: pessoas levadas à guerra por falsos idealismos e que constatam que a realidade é diferente. Não são desertores nem covardes, mas no meio de terríveis provas, são sustentados exclusivamente por forças elementares, impulsos instintivos, reações meramente humanas, sem conhecer um só instante de luz. [1]

Para preparar uma guerra no plano material mas também no espiritual, é preciso ver tudo isso de forma clara e firme, para que as almas e energias possam ser orientadas até a solução mais elevada, a única que convém às idéias tradicionais.

Logo seria preciso espiritualizar o princípio guerreiro. O ponto de partida poderia ser o desenvolvimento virtual de uma experiência heróica, no sentido da mais elevada das três possibilidades que analisamos.

Mostrar como esta possibilidade mais elevada, mais espiritual, foi plenamente vivida nas grandes civilizações que nos precederam, ilustrando assim o seu aspecto constante e universal, é algo que não depende da simples erudição. È precisamente o que nos propomos fazer a partir das tradições inerentes à romanidade antiga e medieval.


[1] Cf. J. Evola: “Dal ‘Nulla di nuovo sul fronte ocidentale’ al Ritorno’”, in La vita italiana, novembro de 1931.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Reencarnar


Por Ananda Coomaraswamy




Voltando ao nosso autómata, consideramos o que ocorre em sua morte. O ser composto se desfaz no cosmo; não há nada que pode sobreviver com uma consciência do ser de Fulano. Os elementos da entidade psicofísica se desintegram e passam a outros como um legado. Isto é, na verdade, um processo que ocorre em todo fase da vida do nosso Fulano e é um processo que pode seguir claramente na propagação, repetidamente descrita na tradição hindu como o “renascimento do pai em e como o filho”. Fulano vive em seus descendentes diretos e indiretos. Esta é a suposta doutrina hindu de reencarnação”; a mesma da doutrina grega de metasomatosis e da metempsicosis; é a doutrina cristã da nossa preexistência em Adão “segundo a substância corporal e a virtude seminal”; é a doutrina moderna da “repetição dos caráteres ancestrais”. Somente o ato da transmissão dos caráteres psicofísicos pode tornar inteligível o que é chamado na religião a nossa referência ao pecado original; na metafísica nossa herança é a ignorância, e pela filosofia nossa capacidade congênita de conhecer nos fins o sujeito e objeto. Apenas quando estamos convencidos de que nada acontece por azar teremos entendido a idéia de uma Providência.

Preciso dizer que isso não é uma doutrina de reencarnação? Preciso dizer que nenhuma doutrina de reencarnação, segundo a qual o ser da pessoa de um mesmo homem que viveu uma vez na terra renascerá de outra mãe terrestre, nunca foi ensinada na Índia, nem sequer no budismo – nem na tradição neoplatônica ou em nenhuma outra tradição ortodoxa? Tanto nos Brahmanas como no Antigo Testamento, se afirma com igual contundência que os que partiram uma vez deste mundo, partiram para sempre e que não serão vistos novamente entre os vivos. Tanto no ponto de vista hindu como no ponto de vista platônico, toda mudança é um morrer.

Nós morremos e renascemos diariamente e a cada instante, e a morte “quando chegar a hora”, é apenas um caso especial. Eu não digo que uma crença em reencarnação jamais foi crida na Índia. Digo que esta crença só pode ser resultado de uma má interpretação popular da linguagem simbólica dos textos e que a crença dos eruditos e teósofos modernos é resultado de uma interpretação dos textos igualmente simplista e desinformada. Se há a pergunta de como pode ter surgido tamanho erro, pedirei que considerem as seguintes afirmações de Santo Agostinho e Tomás de Aquino: que nós estamos em Adão “segundo a substância corporal e a virtude seminal”; que “o corpo humano preexistia nas obras prévias em suas virtudes casuais”; que “Deus não governa o mundo diretamente, senão por meio das causas médias, e se não for assim, o mundo seria provado da perfeição da causalidade”; que “como uma mãe está grávida de sua cria, assim o mesmo mundo está grávido das causas das coisas não nascidas”; que “o próprio destino está nas próprias causas criadas”. Se isso fosse extraído dos Upanishads ou do budismo, não seria visto nisso não apenas o que realmente são, mas a doutrina do karma, e também a doutrina da reencarnação?

Por “reencarnação” entendemos um renascimento aqui mesmo do ser e da própria pessoa. Afirmamos que isso é impossível, por boas e suficientes razões metafísicas. A consideração principal é esta: se o cosmo possui um número de possibilidades indefinidas, as quais todas devem realizar-se em uma duração igualmente indefinida, o universo presente terá cumprido seu curso quando todas suas potências forem reduzidas ao ato – justamente como cada vida humana ter cumprido seu curso quando todas suas possibilidades forem esgotadas.

O fim de uma aeternidade terá sido alcançado então sem lugar algum para uma repetição dos acontecimentos e não para uma repetição das condições passadas. A sucessão temporal implica uma sucessão de coisas diferentes. A história se repete a si mesma em tipos, mas não pode se repetir em nada particular. Podemos falar de uma “migração” de “genes” e chamar isto de um renascimento de tipos, mas esta reencarnação do caráter de Fulano deve ser distinguida da “transmigração” da verdadeira pessoa de Fulano.

Tais são a vida e a morte do animal mortal e racional Fulano. Mas quando Boécio confessou que é este animal, a Sabedoria lhe respondeu que este homem, Fulano, duvidava de quem ele era. É neste ponto onde devemos nos separar dos “positivistas”, materialistas” ou “sentimentalistas” (coloco entre aspas estas duas palavras porque “matéria” é o que é “sentido”). Tenhamos presente a definição do homem como “corpo, alma e espírito”. O Vedanta afirma que o único ser verdadeiro do homem é espiritual, e que este ser não está no Fulano nem em nenhuma “parte” dele, sendo que apenas o reflete. Afirma, em outras palavras, que este ser não está no plano de Fulano nem está de modo algum limitado pelo campo de Fulano, sendo que se estende deste campo até seu centro, independente dos lugares que adentra. O que ocorre durante a morte, então, acima da desintegração de Fulano, é uma retirada do espírito do veículo fenomênico do qual ele havia sido durante a “vida”. Por conseguinte, falamos com exatidão mais estrita quando nos referimos à morte como uma “entrega do espírito” ou quando dizemos que Fulano “expirou”. É necessário relembrar, apenas entre parêntesis, que este “espírito” não é um espírito no sentido do espiritismo, nem uma “personalidade supervivente”, mas sim um princípio puramente intelectual tal como do qual onde são feitas as idéias, é “espírito” no sentido em que é o espírito o Espírito Santo. Assim, na morte, o pó retorna ao pó e o espírito à sua fonte.

Após a morte de Fulano há duas possibilidades, as quais são aproximadamente as implicadas pelas expressões familiares de “salvo” ou “condenado”. A consciência do ser de Fulano esteve centrada em si mesma e deve perecer com ele, o bem estava centrado em seu espírito e parte com ele. É o espírito, como expressam os textos vedânticos, que se “recolhe” quando alma e corpo se separam. Suponhamos que nossa consciência do ser estava concentrada no espírito, podemos dizer que quanto mais completamente formos “participantes do que somos”, ou “despertados”, antes da dissolução do corpo, tão mais próximo do centro do campo será nossa próxima aparição ou “renascimento”. A morte da nossa consciência do ser não vai a nenhuma parte que não está agora.

Depois consideraremos o caso daquele cuja consciência do ser foi despertada agora, mas será antes dos nossos últimos vinte e um passos ou níveis de referência e para quem quer apenas um vigésimo segundo passo. Agora vamos considerar apenas o primeiro passo. Se efetuamos este passo antes de morrer – se estamos vivendo em algum grau “no espírito” e não meramente como animais racionais – teremos cruzado, quando o corpo e alma se separarem no cosmo, o primeiro dos lugares ou circunferências que encontraremos entre nós e o Espectador central de todas as coisas, o Sol Supernal, o Espírito e a Verdade. Iremos ver o ser em um novo contorno, onde, por exemplo, poderá haver todavia uma duração, mas não em nosso sentido de presente do tempo. Não seremos levados com nenhum dos nossos aparatos psicofísicos que poderiam ser inerentes de uma memória sensível. Sobreviveriam apenas as “virtudes intelectuais”. Isso não é a supervivência de uma “personalidade” (a qual foi uma propriedade deixada quando partimos); é o ser continuado da mesma pessoa de Fulano, sem carregar as mais grosseiras das definições anteriores de Fulano. Teremos cruzado sem interrupção a consciência do ser.

Desta forma, por uma sucessão de mortes e renascimentos, todos os lugares podem ser ultrapassados. A vida que seguiremos será a do raio, o raio espiritual que nos liga com o Sol central. É a ponte única que cruza o rio da vida que separa uma orelha da outra. A
palavra “ponte” aqui é usada deliberadamente, pois ela é “mais afiada que o fio da navalha”, a ponte de Cinvant de Avesta, a “ponte do horror”, familiar ao folclorista, cuja qual nada além do herói pode passar, uma ponte de luz consubstancial como sua fonte. O Veda expressa “Eu sou a Ponte” – uma descrição que corresponde à cristã “Eu sou o caminho”. Terá se adivinhado que o passo nesta ponte se constitui por etapas que são definidas por seus pontos de intersecção com nossas vinte e uma circunferências, o que é chamado propriamente de transmigração ou regeneração progressiva. Cada passo desta via está marcado por uma morte própria e anterior a “si mesma”, e por um renascimento consecutivo e imediato de “outro homem”. Devo interpolar aqui que esta exposição foi inevitavelmente simplificada. Foi distinguido as direções de moção, uma circular e determinada, a outra centrípeta e livre, mas o que não foi deixado claro é que seu resultado pode ser indicado propriamente apenas por um espiral.

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