quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Chogyam Trungpa - Fragmentos



ALUNO: Como a implacabilidade se aplica a destruição do ego? Ser implacável parece tão pouco compassivo, quase egoico por si só.
TRUNGPA RINPOCHE: Bem, é a intensidade do ego que gera medidas não-compassivas . Em outras palavras, quando a neurose e a confusão atingem um ponto extremo, a única forma de corrigir a confusão é destruindo-a. Você tem que despedaçar a coisa completamente e por inteiro. O processo de destruição surge da própria confusão e não da consideração de alguém sobre ser uma boa idéia destruir a confusão à força. Nenhum outro pensamento está envolvido. A intensidade da própria confusão gera sua destruição. Implacabilidade é apenas colocar a energia em ação. É apenas deixar aquele energia queimar a si própria ao invés de você matar algo. Você deixa as neuroses do seu ego cometerem suicídio ao invés de mata-las. Isto é implacável. O ego está matando a si mesmo implacavelmente, e você está criando um espaço para que isso aconteça.
Isto não é guerra. Você esta ali, e portanto acontece. De outra forma, se você não está ali, há a possibilidade de todo tipo de bodes expiatórios e saídas secretas de todos os tipos. Mas se você está ali, você nem precisa de fato ser implacável. Apenas estar ali; do ponto de vista do ego, é implacável.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Metafisica da Guerra


Cap. V e Final de "Metafísica da Guerra", de Julius Evola



Atingimos o fim desta concisa obra consagrado à guerra como valor espiritual referindo-nos a uma última tradição do ciclo heróico indo-europeu, aquela do Bhagavad-Guita, talvez o mais célebre texto da antiga sabedoria hindu, escrito essencialmente pela casta guerreira.

A sua escolha não é arbitrária nem deve nada ao exotismo. Conforme a tradição islâmica nos permite formular, no universal a idéia de “grande guerra” interior, possível contrapartida da alma numa guerra exterior, a tradição transmitida pelo texto hindu nos permite enquadrar definitivamente nosso tema numa visão metafísica.

Sob um olhar mais abrangente, esta referência ao Oriente hindu, ao grande Oriente heróico e não àquele dos teólogos, dos panteístas humanitários e das velhas damas em êxtase diante de Gandhi e dos Rabindranath Tagore, parece-nos igualmente útil para ratificar as opiniões e a compreensão supra tradicional que não são os mínimos objetivos que nós procuramos. Ficamos tempo demais escravos das antíteses artificiais Oriente/Ocidente: artificiais pois são baseadas no último Oriente modernista e materialista, que afinal, tem pouco de comum com aquele que o precedeu, com a verdadeira e grande civilização ocidental. O Ocidente moderno é tão oposto ao Oriente como o é ao antigo Ocidente. Ao voltar para um passado remoto, vemos um patrimônio étnico e cultural largamente comum, e que corresponde logo a uma única denominação “indo-européia”.

As formas originais de vida e de espiritualidade, das instituições dos primeiros colonizadores da Índia e do Irã, tinham muitos pontos de contacto com aqueles povos helênicos e nórdicos, mas também com os antigos Romanos.

Agora vamos abordar as tradições que nos dão um exemplo das afinidades de concepções espirituais comuns, de combate, de ação e de morte heróica, contrariamente à idéia preconcebida surgida sempre que falamos da civilização hindu, quando só pensamos em nirvana, faquires, evasão do mundo, negação dos valores “ocidentais”, da personalidade, etc.

O Bhagavad-Guita foi sob a forma de diálogo, entre o guerreiro Arjuna e um Deus, Krishna, seu mestre espiritual. O diálogo tem lugar durante uma batalha em que Arjuna hesita em combater, freado por seus escrúpulos humanitários. Interpretadas em chaves de espiritualidade, as duas figuras, Arjuna e Krishna, representam as duas partes do ser humano: Arjuna o principio da ação, Krishna o principio do conhecimento transcendente. O diálogo transforma-se numa espécie de monólogo, primeiro de clarificação interior, depois resolução heróica enquanto espiritual do problema da ação guerreira, que se impõe a Arjuna, no momento de entrar no campo de batalha.

Ora, a compaixão que detém o guerreiro, no momento de combater, quando este descobre no campo inimigo os amigos de jogos e alguns de seus parentes, é qualificada por Krishna ( principio espiritual), de “desordem indigna dos Aryas, que fecha o céu e preenche de vergonha” (B.G.II,2 B). Assim retornamos ao tema que já encontramos muitas vezes, nos ensinamentos tradicionais do Ocidente: “ morto, tu ganharás o céu; vencedor, tu possuirás a terra. Levanta-te então, filho de Kunti, para combater” (op.cit., II,37). Ao mesmo tempo se desenha o tema de uma “guerra interior”, guerra que é preciso travar consigo mesmo: “sabendo logo que a razão é a mais forte, afirma-te a ti mesmo; e destrói o inimigo de formas escusas e de abordagem difícil”. (op.cit.,III,43). O inimigo exterior tem, ao lado do inimigo interior, que é a paixão, a sede animal de viver. Vejamos como é definida a justa orientação: “ abandona em mim todas as tuas ações, pensa na Alma suprema, torna-te livre de ti mesmo, combate e teus tormentos irão desaparecer”. Op.cit.,III,30).

Devemos perceber o apelo a uma lucidez, supra consciente e supra passional do heroísmo, assim como não devemos negligenciar esta passagem que sublinha o caráter de pureza, do absoluto que deve ter uma ação e o que ela pode ter em termos de “guerra santa”: “ Tem por igual prazer e pena, ganho e perda, vitória e derrota, e entrega-te inteiramente à batalha: assim evitarás o pecado” (op.cit.,II,38). Assim se coloca a idéia de “pecado”, no que se refere apenas ao estado de vontade incompleto e de ação, interiormente ainda afastada da elevação, na qual a vida significa tão pouco, a sua como a dos outros, e onde nenhuma medida humana possui qualquer lugar.

Se ficarmos neste plano, este texto oferece-nos considerações de ordem absolutamente metafísica, visando mostrar como, num tal nível, acaba por agir sobre o guerreiro uma força mais divina que humana. O ensinamento que Krishna (principio do “conhecimento”) dispensa a Arjuna (principio da “ação”) para acabar com as suas hesitações, visa sobretudo realizar a distinção entre o que é incorruptível como espiritualidade absoluta, e aquilo que existe somente duma maneira ilusória como elemento humano e natural: “Sabemos que o não Ser não tem existência, sabemos também que o Ser nunca deixa de existir (…) Mas saibam que em tudo que isto for penetrado, é indestrutível, (…) aquele que crê que mata e aquele que crê que é morto, estes dois se enganam; nem este mata nem aquele morre (…) não está morto quando o corpo está morto (…) É por isso que combatas, oh Filhos de Bharata! “ (op.cit.,II,16,17,19,20 e 18).

Mas não é tudo. A consciência da irrealidade metafísica daquilo que perdemos, ou fazemos perder, como vida caduca e corpo mortal (consciência que tem seu equivalente numa das tradições que nós já examinamos antes, onde a existência humana é definida como “ jogo e frivolidade”), se associa à idéia que o espírito, no seu absoluto, em sua transcendência diante tudo aquilo que é limitado e incapaz de ultrapassar este limite, não pode aparecer senão como uma força destruidora. Por isso se coloca o problema de ver em quais termos, dentro do ser, instrumento necessário de destruição e de morte, pode o guerreiro evocar o espírito, justamente sob esse aspecto, ao ponto de com ele se identificar. O Bhagavad-Guita assim diz exatamente. Não somente o Deus declara: “Eu sou a virtude dos fortes quando ela é isenta de paixão e de desejo; (…) eu sou o esplendor do fogo; (…) eu sou a vida em todos os seres e o ardor da mortificação dos ascetas; (…) eu sou a inteligência dos sábios, a majestade dos poderosos” (op.VII,11,9,10).

Pois o Deus que Se manifesta a Arjuna sob uma forma transcendente, terrível e fulgurante, e oferece-Lhe uma visão absoluta da vida: tal como lâmpadas submetidas a uma luz muito intensa, com circuito investidos de potência elevada demais, os seres vivos caiem trespassados porque dentro deles queima uma força que transcende a própria perfeição, que vai além de tudo o que eles podem ou almejam. Por causa disto que eles atingem um cume, e como levados por ondas às quais se tinham abandonado e que os levava até um certo ponto, eles arriscam, dissolvem-se, morrem e retornam ao não-manifestado. Mas aquele que não teme a morte, sabe assumir a sua própria morte, passando por lá tudo o que o destrói, engole, quebra, ele acaba por atravessar o limite, consegue manter-se na crista das ondas, não se enterra, ao contrário, aquilo que está além da vida nele é manifestado. É assim que Krishna, a personificação do “principio do espírito”, depois de se ter revelado na sua totalidade a Arjuna, pode dizer: “mesmo sem ti, todos estes guerreiros apresentados nas armadas inimigas vão perecer … Então levanta-te, conquista a tua glória; triunfa sob teus inimigos e adquire um vasto império. Eu já assegurei a derrota deles; sê somente um instrumento, mata-os. Não fiques perturbado; combate e vencerás teus rivais. “ (op.cit., XI,32,33,34).

Portanto encontramos assim a identificação da guerra com o “ caminho de Deus”, como já falamos nas páginas anteriores. O guerreiro cessa de agir enquanto pessoa. Uma grande força, não-humana, transfigura a ação, a torna absoluta e pura, precisamente no momento onde ela deve ser extrema. Vejamos uma imagem muito eloqüente e que pertence a esta tradição: “A vida é como um arco; a alma é como uma flecha; o espírito absoluto o alvo a atingir. Unir-se a este espírito como a flecha disparada se agarra ao alvo”. Esta imagem é uma das mais fortes formas de justificação metafísica da guerra, uma das imagens mais completa da guerra como “guerra santa”.

Para terminar este trabalho das formas de tradição heróica, tal como nos foi apresentado por povos e épocas tão diversas, acrescentaremos ainda algumas palavras de conclusão.

Esta excursão num mundo que pode parecer insólito a alguns e nada tendo a ver com o nosso mundo, nós não o fizemos por curiosidade nem para exibir nossa erudição. Nós o fizemos, pelo contrário, no intuito preciso de demonstrar o sagrado da guerra, pois a possibilidade de justificar a guerra espiritualmente e a sua necessidade, constitui, no senso mais alto do termo, uma tradição. É algo que sempre esteve e sempre se manifestou no ciclo ascendente de todas as grandes civilizações. Porquanto a neurose da guerra, as propagandas humanitárias e pacifistas, as concessões feitas à guerra como “mal necessário”, e fenômeno político ou natural – tudo isto não corresponde a nenhuma tradição, não é mais que uma invenção moderna, recente, a par da decomposição que caracteriza a civilização democrática e materialista, contra a qual se afirmam novas forças revolucionárias.

Neste sentido, tudo aquilo que recolhemos, de fontes tão diversas e com o cuidado constante de separar o essencial do contingente, o espírito da palavra, possam servir a um conforto interior, a uma confirmação, a uma certeza aumentada. Não somente o instinto viril é justificado em termos superiores, mas também a possibilidade de discernir as formas da experiência heróica que correspondem à nossa mais alta vocação, e se desvenda bruscamente.

Agora devemos retornar àquilo que escrevemos no inicio deste estudo, demonstrando que há várias maneiras de ser “herói”, (ver animal e sub-pessoal). Ou seja, o que conta não é tanto a possibilidade vulgar de se lançar numa batalha e de se sacrificar, mas sim o espírito segundo o qual podemos viver uma aventura deste gênero. Agora temos todos os elementos para escolher, entre diferentes aspectos da experiência heróica, aquele que possamos considerar absoluto, aquele que possa verdadeiramente identificar a guerra com o “caminho de Deus”, e dentro do herói, possa realmente, deixar entrever uma manifestação divina.


Mas também, devemos recordar que, quando dizemos que o ponto onde a vocação guerreira atinja realmente um valor metafísico, refletindo a plenitude universal, dentro de uma raça, só pode tender a uma manifestação e a uma finalidade igualmente universais, o que significa: só se pode predestinar esta raça a um império. Pois somente o império, tal uma ordem superior onde reine a paz triumphalis, reflexo terrestre da soberania do “supra-mundo”, pode ser comparável às forças, que dentro do domínio do espírito, manifestam as mesmas características de pureza, de força, de transcendência em relação a tudo que é pathos, paixão e limites humanos, e que se refletem nas grandes e livres energias da natureza.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Mais sobre o phronema da Grande Síntese na Contracultura

À Aristocracia do Espírito,

Continuando a nossa série sobre elementos da Grande Síntese inseridos dentro da contracultura, indicaremos mais obras diretamente ligados ao phronema da revolta do Espírito contra a razão. Prosseguimos com uma música da banda de Heavy Metal Judas Priest, "Beyond The Realms Of Death”, que destacamos:

Keep the world with all its sin
It's not fit for livin' in
Yeah! I will start again
It can take forever, and ever, and ever
And ever, but I'll gonna win.



Muito bem, pois sabedores que somos da necessidade em se revoltar contra às limitações da realidade, muito bem expressada pelo genial Novalis, "o mundo será como eu quero que ele seja!", este sublime sentimento de rebelião contra as limitações e pecados do mundo é declarado na música, com um importante adendo - a eterna luta contra a perversão, contra a tirania do mundo, ainda que por vários eons até a derradeira vitória do espírito.

No campo cinematográfico, ainda que não muito dentro da contracultura, encontramos a clássica e gloriosa película estrelada por Vincent Price, “The Abominable Dr. Phibes" e “Dr. Phibes Rises Again”). Além do divertidíssimo humor negro por toda a obra, vemos em Phibes, tanto no porte como nas ações, o mítico third positioner, o valoroso aristocrata do espírito contra a degeneração.
É óbvio que Vincent Price, com sua pose de verdadeiro aristocrata (o que de fato, era) de modos elegantes e postura sem-igual, ajudou na composição do mítico Doutor, pois, como todo assassino interpretado por Price, Phibes não é um grosseirão qualquer sedento por sangue, que mata armado de armas rudimentares e com muita força bruta. Pelo contrário - cada morte é repleta de simbolismo, genialidade, planejamento e coroada com uma belíssima dança.

Entretanto, sábios aristocratas, há outro elemento que nos chama mais atenção: a atitude do Dr. Phibes contra as amarras da morte. Sua vingança, planejada com base em avançada Teologia, se dá por conta de um erro humano que vitimou sua mulher. O inconformismo de Phibes, tanto contra a morte de sua esposa, demonstrado no segundo filme, quando vai em busca de sua ressurreição, tanto em sua vingança contra os malevolentes que tolheram a vida de sua amada, demonstram seu desejo de não aceitar a realidade—desejo que só é aplacado através do sangue dos pérfidos.

Por enquanto, caros confrades, recomendo que meditem a letra da música e assistam com muita atenção aos dois filmes, e prestem muita atenção nos simbolismos teológicos do primeiro. Creio que meus nobres amigos não terão apenas algumas boas horas de entretenimento, mas também ganharão uma boa oportunidade para meditação e reflexão sobre o phronema da nossa Terceira Via.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Canção da Realização da Vacuidade

Escute-me, homem afortunado!
Por acaso esta vida não é incerta e ilusória?
Por acaso seus prazeres e alegrias não são como miragens?
Por acaso há alguma paz neste samsara?
Por acaso a sua falsa felicidade não é irreal como um sonho?
Por acaso o elogio e a reprovação não são tão vazios quanto um eco?
Por acaso a mente e o Buddha não são idênticos?
E o Buddha, não é o mesmo que o dharmakaya?
E o dharmakaya, não é idêntico à verdade?

Os iluminados sabem que todas as coisas são da mente;
Portanto, deve-se observar a mente, dia e noite.
Se observá-la, ainda sim nada verá.
Então, fixe sua mente nesse estado, que transcende toda visão.

Não há qualquer entidade própria na mente de Milarepa.
Eu, eu mesmo, sou o Mahamudra,
Porque não há diferença alguma entre a meditação estática e a ativa;
Não tenho necessidade de estados diferentes no caminho.
De qualquer modo que se manifestem, sua essência é a vacuidade.
Não há atenção nem desatenção em minha contemplação.

Experiencie a realização da vacuidade;
Comparado com outros ensinamentos, este é o melhor.
A prática yógica dos canais, ventos e gotas,
Os ensinamentos do karma-mudra e do mantra-yoga,
As práticas de visualização do Buddha e das quatro posições puras
São apenas os primeiros passos do Mahayana.
Praticá-los não erradica o desejo nem o ódio.

Guarde isto que canto firmemente em sua mente;
Todas as coisas são da própria mente, que é vazia.
Quem nunca se separa da experiência e da realização da vacuidade
Realiza, sem esforço, toda a prática de veneração e disciplina.

É nisto que se baseia todo mérito e todo prodígio.



Milarepa

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Simbolismo do Xadrez

É fato conhecido que o jogo de xadrez se originou na Índia. Foi passado para o Ocidente medieval pelo intermédio dos persas e árabes, a quem nós devemos, por exemplo, a expressão “xeque-mate” (Schachmatt em alemão) que é derivado do Persa shâh = rei e o árabe mât: “o rei está morto.” Na época do Renascimento foram mudadas algumas das regras do jogo: à “rainha”(1) e aos dois “bispos”(2) foi concedida maior mobilidade, e a partir daí o jogo adquiriu um caráter mais abstrato e matemático; o modelo básico foi mantido, assim como a estratégia, sem que tenham se perdido as características essenciais de seu simbolismo.

Na posição original das peças de xadrez, o modelo estratégico antigo permanece óbvio; a pessoa pode reconhecer dois exércitos dispostos de acordo com a ordem de batalha que era habitual no Oriente antigo: as tropas leves, representadas pelos peões, formam a primeira linha; o corpo do exército consiste nas tropas pesadas, as carruagens de guerra (“torre”), o cavalo (“a cavalaria”), e os elefantes de guerra (os bispos); o “o rei” com sua “dama” ou “o conselheiro” é posicionado no centro das tropas.

A forma do tabuleiro de xadrez corresponde o “clássico” tipo de Vastu-mandala (da doutrina tradicional Hindu), o diagrama que também constitui o plano básico de um templo ou uma cidade. Tem sido considerado (3) que este diagrama simboliza a existência concebida como um “campo de ação” dos poderes divinos. Assim, o combate que acontece no jogo de xadrez representa, em seu significado mais universal, o combate do devas com o asûras, isto é, dos “deuses” com os “titãs”, ou dos “anjos” (4) com os “demônios”; todos os outros significados do jogo derivam deste, que é o fundamental.

A descrição mais antiga que possuímos do jogo de xadrez aparece na obra “As Pradarias Douradas”, do historiador árabe Al-Mas'ûdî, que viveu em Bagdá no século IX. Al-Mas'ûdî atribui a invenção - ou codificação - do jogo a um rei hindu “Balhit”, um descendente de “Barahman” Há uma confusão óbvia aqui entre a casta dos Brahmins, e uma dinastia; mas que o jogo de xadrez tem que uma origem brahmin é provado pelo eminente caráter sacerdotal do diagrama de 8 x 8 quadrados (ashtâpada). Mais adiante, o simbolismo bélico do jogo relaciona isto ao Kshatriyas, a casta de príncipes e nobres, como Al-Mas'ûdî indica quando ele escreve que os hindús consideraram o jogo de xadrez (shatranj, do chaturanqa sânscrito (5)) como uma “escola de governo e defesa”.

É dito que o Rei Balhit escreveu um livro sobre o jogo no qual “ele fez um tipo de alegoria dos corpos celestes, como os planetas e os doze signos do Zodíaco, consagrando cada peça a uma estrela...”. - Podemos lembrar que os hindus reconhecem oito planetas: o sol, a lua, os cinco planetas visíveis ao olho nu, e Rahu, a “estrela escura” dos eclipses (6); cada um destes “planetas” rege uma das oito direções de espaço”. “Os indianos”, continua Al-Mas'ûdî, “dão um significado misterioso ao redobrar, quer dizer, para a progressão geométrica, efetuada nos quadrados do tabuleiro de xadrez; eles estabelecem uma relação entre a primeira causa que domina todas as esferas e na qual tudo acha seu fim, e a soma dos quadrados do tabuleiro de xadrez....”. Aqui o autor está confundindo o simbolismo cíclico insinuado no ashtapada e a lenda famosa de acordo com as qual o inventor do jogo pediu ao monarca que enchesse os quadrados do tabuleiro de xadrez de grãos de milho, colocando um grão no primeiro quadrado, dois no segundo, quatro no terceiro, e assim por diante, até o sexagésimo-quarto quadrado, o que dá a soma de 18.446.744.073.709.551.616 grãos.

O simbolismo cíclico do tabuleiro de xadrez reside no fato que expressa o desdobramento de espaço de acordo com o quaternário e octonário das direções principais (4 x 4 x 4 = 8 x 8), e que sintetiza, de forma cristalina, os dois grandes ciclos complementares de sol e lua: o duodenário -12- do zodíaco e as 28 mansões lunares; além disso, o número 64, que é a soma dos quadrados no xadrez-tábua, é um sub-múltiplo do número cíclico fundamental 25920, que mede a precessão dos equinócios. Nós vimos que cada fase de um ciclo, “fixado” no esquema de 8 x 8 quadrados, é governado por um corpo celeste e ao mesmo tempo simboliza um aspecto divino, personificado por um deva (7). É assim que este mandala simboliza ao mesmo tempo o cosmo visível, o mundo do Espírito, e a Divindade em seus aspectos múltiplos.

Al-Mas'ûdî está então certo ao dizer que os hindus explicam, “por cálculos baseados no tabuleiro de xadrez, a marcha do tempo e os ciclos, as influências mais altas que são exercidas neste mundo, e os laços que os prendem à alma humana...”. (8)

O simbolismo cíclico do tabuleiro de xadrez era conhecido pelo Rei Alphonsus o Sábio, o trovador famoso de Castilha que em 1283 escreveu o “Libros del Acedrex”, uma obra que baseada em grande parte em fontes Orientais. Alphonsus o Sábio também descreve uma variante muito antiga do jogo de xadrez, o “jogo das quatro estações” que é jogado entre quatro parceiros, de forma que as peças, dispostas nos quatro cantos do tabuleiro de xadrez, são movimentadas por cada um em sentido circular, análogo ao movimento do sol. As 4 x 8 peças têm as cores verde, vermelho, preto e branco; elas correspondem às quatro estações: primavera, verão, outono e inverno; aos quatro elementos: ar, fogo, terra, e água; e aos quatro “humores” orgânicos. (9)

O movimento dos quatro campos simboliza transformação cíclica. Este jogo que estranhamente se assemelha a certos rito e danças “solares” dos índios norte-americanos, representa analogamente o princípio fundamental do tabuleiro de xadrez.

O tabuleiro de xadrez pode ser considerado como a extensão de um diagrama formado por quatro quadrados, alternativamente preto e branco, e constitui em si mesmo um mandala de Shiva, Deus em seu aspecto transformador: o ritmo quaternário, que é o deste mandala , é a “coagulação do espaço”, e expressa o princípio do tempo.

Os quatro quadrados, colocados ao redor de um centro não-manifestado, simbolizam as fases cardeais de todos os ciclos. A alternância dos quadrados pretos e brancos neste diagrama elementar do tabuleiro de xadrez (10) salienta sua significação cíclica (11) e o faz o equivalente retangular do símbolo extremo-oriental do yin-yang. É uma imagem do mundo em seu dualismo fundamental (12).

Se o mundo sensível em seu desenvolvimento integral resulta até certo ponto da multiplicação das qualidades inerentes no espaço e tempo, o Vastu-mandala, por sua parte, deriva da divisão de tempo através de espaço: podemos recordar a gênese do Vastu-mandala no interminável ciclo celestial, que é dividido pelos pontos cardeais, cristalizado então em uma forma retangular (13). O mandala é assim a reflexo invertido da síntese principial do espaço e tempo, e é nisto que sua significação ontológica reside.

De outro ponto de vista, o mundo é “tecido” das três qualidades fundamentais ou gunas (14) e o mandala representa esta tessitura de uma maneira esquemática, em conformidade com as direções cardeais de espaço. A analogia entre o Vistu-mandala e a tessitura se dá pela alternação de cores que recordam um tecido cuja trama e urdidura são alternadamente aparentes e escondidos.

Além disso, a alternação de preto e branco corresponde aos dois aspectos da mandala que é em princípio complementar mas, na prática, opostos: a mandala é, por um lado, Purusha-mandala, quer dizer, um símbolo do Espírito Universal Purusha já que é imutável e síntese transcendente do cosmo; por outro lado é um símbolo de existência (Vastu) considerado como o suporte passivo das manifestações divinas.

A qualidade geométrica do símbolo expressa o Espírito, enquanto sua extensão puramente quantitativa expressa existência. Do mesmo modo, sua imutabilidade ideal é “espírito” e sua limitação coagulada é “existência” ou materia; aqui não se trata de matéria prima, virgem e generosa, mas “materia secunda”, “escura” e caótica, que é a raiz do dualismo existencial. Em conexão com isto, podemos recordar o mito segundo o qual Vastu-mandala representa um asûra, personificação de existência bruta: os devas conquistaram este demônio e estabeleceram a sua “morada” no corpo estendido de sua vítima; assim, eles lhe conferem uma “forma”, mas é ele que os manifesta (15).

Este significado duplo que caracteriza o Vastu-Purusha-mandala, o qual, aliás, será encontrado em todo símbolo, é de certo modo atualizado pelo combate que o jogo de xadrez representa. Este combate, como dissemos, é essencialmente entre devas e o asûra, que disputam o tabuleiro de xadrez do mundo. É aqui que o simbolismo do preto e do branco, já presente nas casas do tabuleiro de xadrez, assume seu valor completo: o exército branco é Luz e o exército preto, escuridão.

Em um domínio relativo, representa a batalha que acontece no tabuleiro de xadrez representa qualquer um dos dois exércitos terrestres, cada qual lutando em nome de um princípio (16), ou a batalha, no homem, do espírito e da escuridão; estas são as duas formas do “guerra santa”; a “pequena guerra santa” e a “grande guerra santa”, de acordo com um dito do Profeta Muhammad. Veremos a relação do simbolismo iimplicado no jogo de xadrez com o tema do Bhagavadita, um livro que é destinado aos Kshatriyas.

Se transpusermos a significação das diferentes peças de xadrez ao domínio espiritual, o rei se torna o coração, ou espírito, e as outras peças as várias faculdades da alma. Além disso, os movimentos das peças correspondem a modos diferentes de perceber as possibilidades cósmicas representadas pelo tabuleiro de xadrez: há o movimento axial do “castelos” ou carruagens de guerra, o movimento diagonal dos bispos ou elefantes, que seguem uma única cor ( das casas) , e o movimento complexo dos cavalos. O movimento axial, com “cortes” pelas diferentes “cores”, é lógico e viril, enquanto o movimento diagonal corresponde a uma continuidade “existencial” - portanto, feminino. O salto dos cavalos corresponde à intuição.

O que mais fascina o homem de casta nobre e bélica é a relação entre a vontade e o destino. Ora, é precisamente isto que é claramente ilustrado pelo jogo de xadrez, já que seus movimentos permanecem sempre inteligíveis.
Alphonsus o Sábio, em seu livro sobre xadrez, relata como um rei da Índia desejou saber se o mundo obedece à inteligência ou à sorte. Dois homens sábios, seus conselheiros, deram respostas opostas, e para provarem suas respectivas teses, um deles levou como exemplo o jogo de xadrez no qual a inteligência prevalece sobre a sorte, enquanto o outro trouxe um jogo de dados, o símbolo de fatalidade (17). Al-Mas'ûdî escreve igualmente que o rei “Balhit”,considerado como o codificador o jogo de xadrez, deu preferência ao xadrez em relação ao nerd, um jogo de azar, porque no primeiro forma-se a inteligência e, no segundo, a ignorância.

Em cada fase do jogo, o jogador é livre para escolher entre várias possibilidades, mas cada movimento implicará uma série de conseqüências inevitáveis, de forma que a livre escolha a cada jogada estará crescentemente limitada; o fim do jogo é visto, não como o fruto do acaso, mas como o resultado de leis rigorosas.

É aqui que vemos não só a relação entre vontade e destino, mas também entre liberdade e conhecimento; exceto no caso de inadvertência por parte de um dos oponentes, o jogador só salvaguardará sua liberdade de ação quando as decisões dele corresponderem com a natureza do jogo, quer dizer, com as possibilidades que o jogo implica. Em outras palavras, liberdade de ação está aqui em solidariedade completa com previsão e conhecimento das possibilidades; ao contrário, o impulso cego, porém livre e espontâneo como pode aparecer à primeira vista, revela-se no resultado final como uma “não-liberdade”.

A “arte real” é governar o mundo – externo e interno - em conformidade com suas próprias leis. Esta arte pressupõe sabedoria que é o conhecimento de possibilidades; agora todas as possibilidades são contidas, - de uma maneira sintética, no Espírito universal e divino. A verdadeira sabedoria é uma identificação mais ou menos perfeita com o Espírito (Purusha), este último sendo simbolizado pela qualidade geométrica (18) do tabuleiro de xadrez, “selo” da unidade essencial das possibilidades cósmicas.

O Espírito é Verdade; pela Verdade, homem é livre; fora de verdade, ele é o escravo de destino. Isso é o ensinamento do jogo do xadrez; o Kshatriya que se dedica a este jogo não só encontra um passatempo ou meios de subliminar sua paixão bélica e necessidade por aventura, mas também, de acordo com sua capacidade intelectual, um apoio especulativo e um “caminho” que conduz da ação à contemplação.






Notas:

(1) No xadrez Oriental esta peça não é uma “rainha” mas um “o conselheiro” ou “ministro” para o rei (em árabe mudaffir ou wazîr, em Persa fersan ou fars). A designação “rainha” no jogo Ocidental se deve indubitavelmente à uma confusão do termo Persa fersan que se tornou alferqa em castelhano e em francês antigo fierce ou fierqe , isto é, “a virgem.” Seja que como for, a atribuição de tal um papel dominante para o rei em relação à “a dama” corresponde bem à atitude de cavalheirismo. Também é significativo que o jogo de xadrez tenha sido passado ao Ocidente através da corrente Arabo-persa que também trouxe a arte heráldica e as regras principais de cavalheirismo.

(2) Esta peça era originalmente um elefante (árabe al-fil) que conduzia uma torre fortalecida. A representação esquemática da cabeça de um elefante em alguns manuscritos medievais também poderia ser vista como um “o boné do bobo” ou a mitra de um bispo: em francês a peça é chamada fou, “o bobo”; em alemão é chamado Laufer “o corredor”.

(3) Veja, do autor, “A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente” (Perennial Books, Londres, 1967), Capítulo l, “A Gênese do Templo Hindu”.

(4) Os devas da mitologia hindu são análogos aos anjos das tradições monoteístas; é sabido que cada anjo corresponde a uma função divina.

(5) A palavra chaturanqa significa o exército hindu tradicional, composto de quatro anqas = elefantes, cavalos, carruagens e soldados.

(6) A cosmologia hindu sempre leva em conta o princípio de inversão e exceção, que resultam do caráter “ambíguo” da manifestação: a natureza das estrelas é a luminosidade, mas como as estrelas por si não iluminam, também deve haver um lado escuro.

(7) Certos textos budistas descrevem o universo como uma tabuleiro de 8 x 8 quadrados, fixado através de cordas douradas; estes quadrados correspondem aos 64 kalpas do Budismo (veja “Saddharma Pundarika”, Burnouf, “Lotus de la bonne Loi”, pág., 148). No Ramayana, a cidade inconquistável dos deuses, Ayodhyâ, é descrita como um quadrado com oito compartimentos em cada lado. Lembramos também na tradição chinesa, os 64 signos que derivam dos 8 trigramas comentados no “I-Kinq”. Estes 64 sinais geralmente são organizados em correspondência às oito regiões de espaço. Assim, encontramos novamente a idéia de uma divisão quaternária e octonária do espaço, que sintetiza todos os aspectos do universo.

(8) Em 1254 São Louis proibiu xadrez entre seus assuntos. O santo teve em mente as paixões que o jogo poderia desencadear, especialmente como freqüentemente ocorre com o jogo de dados.

(9) Esta variante de xadrez é descrita no Bhawisya Purana. Alphonsus o Sábio também fala de um “grande jogo de xadrez” que é jogado em um tabuleiro de 12 x 12 quadrados (casas) e no qual as peças representam animais mitológicos; ele o atribui aos sábios da Índia.

(10) Dado que o tabuleiro de xadrez chinês, que igualmente teve sua origem na Índia, não possua a alternação de duas cores, presume-se que este elemento tenha vindo da Pérsia; permanece fiel, no entanto, ao simbolismo original do tabuleiro de xadrez.

(11) Isto também constitui um símbolo de analogia inversa; primavera e outono, manhã e noite, são inversamente análogos. De uma maneira geral, a alternação do preto e branco corresponde ao ritmo do dia e noite, de vida e morte, de manifestação e de reabsorção no não-manifestado.

(12) Por esta razão o tipo de Vâstu-mandala que tem um número desigual de quadrados não pode servir como um tabuleiro de xadrez: o “campo de batalha” que ele representa não pode ter um centro manifestado, pois simbolicamente teria que estar para além das oposições.

(13) Veja, do autor, “A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente”, Capítulo 2, “Os fundamentos da Arte Cristã” (Perennial Books, Londres, 1978).

(14) Veja René Guénon, O Simbolismo da Cruz (Luzac, Londres, 1958).

(15) O mandala de 8 X 8 quadrados também é chamado Mandukat, “a rã”, por alusão à “Grande Rã” (maha-manduka) que suiporta o universo inteiro, e que é o símbolo dae matéria indiferenciada e obscura.

(16) Em uma guerra santa é possível que cada um dos combatentes possa se considerar legitimamente como o protagonista da Luz que luta contra a escuridão. Esta é novamente uma conseqüência do significado duplo de todo símbolo: o que para um é a expressão do Espírito, pode ser a imagem da escuridão nos olhos do outro.

(17) O mandala do tabuleiro de xadrez, por um lado, e dados, no outro, representam dois símbolos diferentes e complementares do cosmo.

(18) Recordemos que o Espírito ou a Palavra é a “forma das formas”, quer dizer, o princípio formal do universo.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Significado das Cruzadas


por Julius Evola

Cap. III de Metafísica da Guerra


Trataremos outra vez das formas da tradição heróica que permitem à guerra assumir o valor de um caminho de realização espiritual, no sentido mais rigoroso do termo, e também de uma justificação e de finalidade transcendental. Já falamos das concepções que, sob este ponto de vista, foram as do antigo mundo romano. Depois olhamos as tradições nórdicas e o caráter imortal de toda a morte realmente heróica no campo de batalha. Referimo-nos necessariamente a estas concepções para chegar ao mundo medieval, à Idade Média como civilização resultante da síntese de três elementos: primeiro romano, depois o nórdico e finalmente o cristão.

Examinaremos agora o ideal de sacralidade da guerra, tal como foi concebido e cultivado ao longo da Idade Média. Evidentemente devemos nos referir às Cruzadas, presos ao seu significado mais profundo, sem as reduzi-las aos determinismos econômicos e étnicos, como os historiadores materialistas, e muito menos reduzi-las a um fenômeno de superstição e de exaltação religiosa, como desejam os espíritos “evoluídos”, enfim, nem mesmo a um fenômeno simplesmente cristão. Sobre este último ponto não devemos perder de vista a relação estreita entre meio e fim. Diz-se que nas Cruzadas a fé cristã se serviu do espírito heróico da cavalaria ocidental. É precisamente o contrário que é verdadeiro. A fé cristã e seus fins relativos e contingentes de luta religiosa contra o “infiel”, da “Libertação do Templo” e da “Terra Santa”, não foram mais que os meios que permitiram a manifestação do espírito heróico, de se afirmar e de se realizar numa espécie de ascese, distinto da contemplação, mas não menos rica em frutos espirituais. A maioria dos cavaleiros que entregaram suas forças deram o sangue pela “guerra santa” não tinham mais que uma idéia e um vago conhecimento teológico sobre a doutrina pela qual combatiam.

Entretanto, o contexto das Cruzadas era rico em elementos susceptíveis para fornecer um significado simbólico, espiritual e superior. Através das vias do subconsciente, os mitos transcendentais refloresciam na alma da cavalaria ocidental: a conquista da “Terra Santa”, situada “além dos mares”, apresenta infinitamente mais referências reais que poderiam supor os historiadores com a antiga saga segundo a qual “no longínquo Oriente onde nasce o sol, se encontra a cidade sagrada onde a morte não reina, mas onde os valorosos heróis que sabem esperá-la gozam de uma celestial serenidade e de uma vida eterna”. Por outro lado, a luta contra o Islam revestiu, por sua natureza, desde o princípio, o significado de uma luta ascética. “Não se trata de combater pelos reinos da terra – escreveu Kluger, célebre historiador das Cruzadas – mas pelo reino dos céus; as Cruzadas não eram do domínio dos homens, mas sim de Deus – por isso não as podemos considerar semelhantes a outros acontecimentos humanos”. A guerra santa devia, segundo a expressão de um antigo cronista, comparar-se “com o batismo semelhante ao fogo do purgatório antes da morte”. Os papas e os pregadores comparavam simbolicamente aqueles que morriam nas cruzadas com o “ouro três vezes ensaiado e sete vezes purificado pelo fogo” e que podia conduzir ao Deus Supremo. “Não esqueçais jamais este oráculo – escreveu São Bernardo – quer vivamos, quer morramos, ao Senhor pertencemos. Que Glória para vós sair da batalha cobertos de louros. Mas que alegria maior para vós, de ganhar sobre o campo de batalha uma coroa imortal … oh, condição afortunada! Poder enfrentar a morte sem temor, mesmo desejá-la com impaciência, e recebê-la com de coração firme”. A glória absoluta estava prometida ao cruzado – glória asolue - em provençal – pois, à parte da imagem religiosa lhe oferecia a conquista da supravida, do estado sobrenatural da existência. Assim, Jerusalém, fim cobiçado da conquista, apresentava-se sob o duplo aspecto, duma cidade terrestre e duma cidade simbólica, a Cruzada tomava um valor interior, independente de todos os seus aparatos, seus suportes e suas motivações aparentes.

Afinal, foram as ordens da Cavalaria quem ofereceram o maior tributo às Cruzadas, com a Ordem do Templo e a dos Cavaleiros de São João de Jerusalém, compostas por homens que, como o monge ou asceta cristão “aprenderam a desprezar a vaidade desta vida; em tais ordens encontravam-se guerreiros fatigados pelo mundo, que tudo tinham visto e tudo tinham provado”, prontos a uma ação total e que não sustentavam mais nenhum interesse pela vida material e temporal nem pela política ordinária, no sentido mais estrito. Urbano II dirigia-se à cavalaria como à comunidade supranacional daqueles “dispostos a partir até onde rebentasse uma guerra, a fim de levar o terror das suas armas para defender a honra e a justiça” … com mais razão deviam escutar e atender ao apelo da “Guerra Santa”, guerra que, segundo um dos escritores da época, não tinha por recompensa um feudo terrestre, revogável e contingente, mas um “feudo celestial”.

Mas o desenrolar das Cruzadas, num contexto mais amplo e no plano ideológico geral, provocou uma purificação e uma interiorização do espírito de iniciativa. Segundo a convicção inicial de que a guerra pela “verdadeira” fé não podia ter mais que uma saída vitoriosa, os primeiros fracassos militares sofridos pelos exércitos cruzados foram um foco de surpresas e assombro, mas à posteriori serviram, contudo, para trazer à luz o aspecto mais elevado da “guerra santa”. O resultado desastroso de uma Cruzada era comparado pelos clérigos de Roma ao destino da virtude desgraçada que não é julgada nem recompensada, a não ser em função da outra vida. E isto anunciava o reconhecimento de algo superior tanto na vitória como na derrota, a colocação no primeiro plano do aspecto próprio à ação heróica cumprida independentemente dos frutos visíveis e materiais, quase como uma oferenda transformando o holocausto viril de toda a parte humana em “glória absoluta” e imortal.

É evidente que desta maneira se devia acabar por atingir um plano, por assim dizer, supratradicional, tomando a palavra “tradição” num sentido mais restrito, mais histórico e religioso. A fé religiosa em particular, os fins imediatos, o espírito antagonista, convertiam-se então em elementos tão contingentes como a natureza variável de um combustível destinado somente a produzir e a alimentar uma chama. O ponto central continuava a ser o valor santo da guerra. Mas se prefigurava igualmente a possibilidade de reconhecer, que aqueles que eram adversários no momento, pareciam atribuir a este combate o mesmo significado tradicional.

Este é um dos elementos graças ao qual as Cruzadas serviram, apesar de tudo, para facilitar o intercâmbio cultural entre o Ocidente gibelino e o Oriente árabe (ponto de reencontro, por sua vez, de elementos tradicionais ainda mais antigos), mas o alcance disso vai muito além do que a maioria dos historiadores demonstraram até ao presente. Da mesma forma, as ordens de cavalaria das cruzadas, se encontraram diante das ordens de cavalaria árabes, que lhes eram quase análogas no plano da ética, por vezes mesmo dos símbolos, e por isso a “guerra santa” que havia motivado as duas civilizações, uma contra a outra em nome das suas religiões respectivas, permitiu igualmente o seu reencontro e que, partindo de duas crenças diferentes, cada uma acabou por dar à guerra um valor de espiritualidade análogo e independente. É afinal aquilo que se sobressai, quando estudarmos como, forte na sua fé, o antigo cavaleiro árabe se eleva ao mesmo nível supratradicional que o cavaleiro cruzado pelo seu ascetismo heróico.

Agora, este é outro ponto que queremos aflorar. Aqueles que julgam as Cruzadas superficialmente, as remetem a um dos episódios mais extravagantes da “obscura” Idade Média, não supõem que o que definem como “fanatismo religioso” é a prova tangível da presença e da eficácia de uma sensibilidade e de um tipo de decisão cuja ausência caracterizava a barbárie autêntica. Já que o homem das Cruzadas sabia todavia afirmar-se, combater e morrer por um ideal, que era essencialmente suprapolítico e suprahumano. Associava-se também a uma união baseada, não sobre o particular, mas sobre o universal. E isto significa um valor, um ponto de referência inabalável.


Naturalmente não se deve confundir nem pensar que a motivação transcendente possa ser uma desculpa para tornar o guerreiro indiferente, para torná-lo negligente aos deveres inerentes à sua fidelidade a uma raça e a uma pátria. Não é bem assim. Pelo contrário, trata-se essencialmente de significados profundamente diferentes, segundo os quais ações e sacrifícios podem ser vencidos, embora observados do exterior, possam parecer absolutamente os mesmos. Existe uma diferença radical entre quem faz simplesmente a guerra, e quem pelo contrário, na guerra faz também a “guerra santa” e vive uma experiência superior, desejada e desejável para o espírito.

É preciso acrescentar que, se esta diferença é, antes de tudo interior e sob o impulso de tudo o que interiormente tem uma força, traduz-se também no exterior, provocando efeitos sobre outros planos e particularmente nos seguintes termos: antes de tudo, termos uma “irredutibilidade” do impulso heróico: quem vive espiritualmente o heroísmo está carregado de uma tensão metafísica, animado por um estimulo cujo objetivo é “infinito”, e superará sempre aquilo que anima quem combate por necessidade, por oficio ou sob impulsos naturais ou sugestões.

Em segundo lugar, quem combate numa “guerra santa” situa-se espontaneamente além de todo o particularismo, vive num clima espiritual que, num determinado momento, pode muito bem dar origem a uma unidade supranacional dentro da ação. É justamente isso que ocorreu nas Cruzadas, quando príncipes e chefes de todos os países se uniram para a expedição heróica e santa, para além dos seus interesses particulares e utilitários e das divisões políticas, realizando pela primeira vez uma grande unidade européia conforme a sua civilização comum e ao próprio princípio do Sacro Império Romano-Germânico.

Se soubermos abandonar o “pretexto”, se soubermos isolar o essencial do contingente, encontraremos um elemento precioso que não se limita a um período histórico determinado. Conseguir conduzir a ação heróica sobre um plano “ascético”, justificá-la também em função desse plano, significa desimpedir o caminho para uma nova e possível unidade de civilização. Isto também significa separar todo o antagonismo condicionado pela matéria, preparar o espaço das grandes distâncias e as amplas frentes, para dimensionar, pouco a pouco, os objetivos externos da ação em seu novo significado espiritual: tal como se verifica quando não é só por um país ou por ambições temporais que se combate, mas em nome de um princípio superior de civilização, de uma tentativa que por ser metafísica nos faz ir adiante, além de todo limite, além de todos os perigos e além de qualquer destruição.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A Sacralidade da Guerra


por Julius Evola .

Cap. II de Metafísica da Guerra



Acabamos de ver como o fenômeno do heroísmo guerreiro pode revestir várias formas e obedecer a diferentes significados, uma vez já definidos os valores da autêntica espiritualidade que o diferenciam profundamente. Por enquanto, começaremos com o exame de certos conceitos relativos às antigas tradições romanas. Geralmente, não há nada além de um conceito laico do valor da romanidade antiga. O romano não foi mais que um soldado no sentido estrito da palavra, e graças às suas virtudes militares, unidas a uma feliz concorrência de circunstâncias, pôde conquistar o mundo. Opinião equivocada, não importa de quem seja.

Antes de tudo, o romano alimentava a intima convicção de que Roma, seu “Imperium” e sua “Aeternitas”, eram derivados de forças divinas. Para considerar esta convicção romana, sob um aspecto exclusivamente “positivo”, é preciso substituir esta crença por um mistério: mistério de como um punhado de homens, sem nenhuma necessidade de “terra” ou “pátria”, sem estarem possuídos por nenhum destes mitos ou paixões, que tanto atraem os modernos e com as quais justificam a guerra e promovem ações heróicas, mas sob um estranho e irresistível impulso, este mistério arrastava os romanos, cada vez mais longe, de país em país, reduzindo tudo a uma “ascese de poder”. Segundo testemunhos de todos os clássicos, os primeiros romanos eram muito religiosos – “nostri maiores religiosissimi mortales” – relembra Salústio e repetem Cícero e Aulo Gélio, mas esta religiosidade não se limitava a uma esfera abstrata e isolada, espalhava-se na prática, no mundo da ação e por conseqüência, abarcava também a experiência guerreira.

Um colégio sagrado formado pelos “Fetiales” presidia em Roma a um sistema bem determinado de ritos, que eram o lado místico de qualquer guerra, desde a sua declaração até a sua conclusão. No geral, é certo que um dos princípios da arte militar romana era evitar travar batalhas antes que os signos místicos tivessem, por assim dizer, indicado o “momento”.

Com as deformações e preconceitos da educação moderna não se quererá ver nisto mais que uma super estrutura extrínseca feita à base de superstições. Quanto aos mais benévolos, não será nada mais que um fatalismo extravagante. Mas não era nem uma coisa nem outra. A essência da arte de adivinhação praticada pelo patriciado romano, assim como outras disciplinas análogas de caráter mais ou menos idêntico no ciclo das grandes civilizações indo-européias, não era descobrir o “destino” na base de uma supersticiosa passividade. Pelo contrario, era descobrir antecipadamente os pontos de conjugação com influências invisíveis, para concentrar as forças dos homens e torná-las mais poderosas, de multiplicá-las e as induzir a atuar sobre um plano superior, com o fim de varrer - quando a concordância era perfeita - todos os obstáculos e resistências no plano material e espiritual. É difícil pois, a partir disso, duvidar do valor romano, a ascese romana de potência não era só na sua contrapartida espiritual e sacra, instrumento da grandeza militar e temporal, mas também num contacto e uma união com as forças superiores.

Se fosse oportuno, poderíamos citar farta documentação para fundamentar esta tese. No entanto, nos limitaremos a recordar que a cerimônia do triunfo tinha em Roma um caráter muito mais religioso que laico-militar, e numerosos elementos permitem deduzir que o Romano atribuía a vitoria dos seus “duces” mais a uma força transcendente, que se manifestava real e eficazmente através deles, no seu heroísmo e inclusive por meio do seu sacrifício (como no rito da “devotio” no qual os chefes se imolavam), que a suas qualidades simplesmente humanas. Desta forma, o vencedor, revestindo as insígnias do Deus capitolino supremo, se identificava com ele, era sua imagem, e depositava nas mãos deste Deus, os louros da sua vitória, em homenagem ao verdadeiro vencedor.

No fundo, uma das origens da apoteose imperial, era o sentimento que debaixo da aparência do Imperador se escondia um “numen” imortal, incontestavelmente derivado da experiência guerreira: O “Imperatore”, originariamente era o chefe militar aclamado sobre o campo de batalha, no momento da vitória, mas nesse instante aparecia também como transfigurado por uma força vinda do alto, terrível e maravilhosa que dava a impressão do “numen”. Esta concepção, por outro lado, não é exclusivamente romana, encontra-se em toda a antiguidade clássico-mediterrânea e não se limitava aos generais vencedores, estendia-se aos campeões olímpicos e aos sobreviventes dos combates sangrentos do circo. Na Grécia, o mito dos Heróis confunde-se com as doutrinas místicas, como o orfismo, e identifica o guerreiro vencedor como o iniciado, vencedor da morte. Testemunhos precisos sobre um heroísmo e um valor que emanavam, mais ou menos conscientemente, das vias espirituais, abençoados não só pelas conquistas materiais e gloriosas, mas também pelo seu aspecto de evocação ritual e de conquista espiritual.

Passemos a outros testemunhos desta tradição que, pela sua natureza é metafísica e, como conseqüência, o elemento “raça” não pode ter mais que uma parte secundária e contingente. Portanto, mais adiante, trataremos da “Guerra Santa” praticada no mundo guerreiro do Sacro Império Romano-Germânico. Esta civilização apresentava-se como um ponto de confluência criadora de vários elementos: um romano, um cristão e um nórdico.

Com relação ao primeiro elemento, já fizemos alusão a ele no contexto que nos interessa. O elemento cristão se manifestara sob as características de um heroísmo cavalheiresco supranacional com as cruzadas. Nos sobra o elemento nórdico. Para que ninguém se espante, assinalamos que se trata de um caráter essencialmente supra-racial, incapaz de valorizar ou denegrir um povo em relação a outro. Para fazer alusão a um plano no qual nos auto excluímos, de momento nos limitaremos a dizer que nas evocações nórdicas, mais ou menos frenéticas celebradas hoje em dia “ad usum delphini” na Alemanha nazista, por surpreendente que possa parecer, se assiste a uma deformação e a uma depreciação das autênticas tradições nórdicas tal como foram originariamente e tal como se perpetuaram nos Príncipes que tinham por grande honra o poder de se denominarem “romanos” ainda que fosse de raça teutônica. Pelo contrário, para numerosos escritores “racistas” de hoje, “nórdico” não significa nada além de “anti-romano” e “romano” tem mais ou menos um significado equivalente a “judeu”.

Portanto, é interessante reproduzir uma significativa forma guerreira da tradição celta: “combatei por vossa terra e aceitai a morte se for preciso: pois a morte é uma vitória e uma liberação da alma”. Este conceito corresponde, em nossas tradições clássicas, à expressão “mors triumphalis”. Quanto à tradição realmente nórdica, ninguém ignora a parte do Walhalla, reino imortal reservado, não apenas aos “homens livres” de fonte divina, mas também aos Heróis mortos no campo de honra (Walhalla significa literalmente “o reino dos eleitos”). O Senhor deste lugar simbólico é Odin-Wotan, conforme descrito na Ynglingasaga, como aquele que, pelo seu sacrifício simbólico na “árvore do mundo”, indicou aos Heróis um modo de esperar o descanso divino, um lugar em que se vive eternamente sobre um cume luminoso e resplandecente, além das nuvens. Segundo esta tradição, nenhum sacrifício, nenhum culto, é tão grato a Deus, nem mais rico em recompensa no outro mundo, como aquele realizado pelo guerreiro que combate e morre na luta. Além do mais: o exército dos heróis mortos em combate deve reforçar a falange dos “heróis celestes” que lutam contra o ragna-rökkr, ou seja, contra o destino do “obscurecimento do divino” que, segundo os ensinamentos, como no caso dos clássicos gregos, (Hesíodo) está sobre o mundo desde as eras mais remotas.

Encontramos este tema sobre formas diferentes nas lendas medievais que concernem à “última batalha” que livrará o Imperador imortal. Neste ponto, para perceber o elemento universal, temos que trazer à luz a concordância de antigos conceitos nórdicos (que, diga-se de passagem, Wagner desfigurou com o seu romantismo empolgado, confuso e teutônico) com as antigas concepções iranianas e persas. Alguns se surpreenderão ao saber que as famosas Walkirias não são quem escolhe as almas dos guerreiros destinados ao Walhalla, mas sim a personificação da parte transcendente destes guerreiros, que tem como equivalentes exatas as fravashi, que na tradição persa são representadas como mulheres de luz e virgens arrebatadas das batalhas. Personificam mais ou menos as forças sobrenaturais em que as forças humanas dos guerreiros ”fiéis ao Deus da Luz” podem transfigurar e produzir um efeito terrível e turbulento nas ações sangrentas. A tradição iraniana continha igualmente a concepção simbólica de uma figura divina - Mitra, concebido como o “guerreiro sem sono” - que à frente das fravashi de seus fiéis, combate contra os emissários do deus das trevas, até a aparição do Saoshyant, senhor de um reino futuro, de “paz triunfal”.

Estes elementos da antiga tradição indo-européia repetem sempre os temas da sacralidade da guerra e do herói que na verdade não morre, mas que passa a ser soldado de um exército místico numa luta cósmica, interferindo visivelmente com os elementos do cristianismo: pelo menos do cristianismo que pode assumir o lema ”Vita est militia super terram” e reconhecer que não é apenas com a humildade, caridade, esperança e tudo mais que se alcança o “Reino dos Céus”, mas que também é possível alcançá-lo com certa violência – a afirmação heróica. É precisamente desta convergência de temas que nasceu a concepção espiritual da “Grande Guerra” própria das Cruzadas da Idade Média e que analisaremos debruçados especialmente sobre o aspecto interior individual destes ensinamentos, que sempre são atuais.

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