quarta-feira, 25 de março de 2009

Sobre a questão do messianismo revolucionário no âmbito da perspectiva marxista

Alphonse van Worden - 1750 AD






- Não é difícil constatar que o marxismo amiúde sói estar de olhos vendados para a eclosão de qualquer processo revolucionário que não siga as categorias 'dialéticas' delineadas em seu quadro de referência.

- Aliás, está na hora de todos reconhecermos que, filosoficamente falando, o marxismo é insustentável. Tal insustentabilidade já se configura nas próprias raízes filosóficas do marxismo, duas vertentes filosóficas estéreis: o idealismo hegeliano e o materialismo metafísico feurbachiano. O idealismo hegeliano padece de um vício de origem: a crença na realidade ontológica das Idéias, o que destrói qualquer possibilidade de elaboração de um método analítico preciso e consistente; o materialismo, por sua vez, é em última instância apenas uma manifestação particular do idealismo, já que confere um estatuto ontológico de realidade a um construto conceitual, a idéia de 'matéria'. Marx, por conseguinte, ao formular o materialismo dialético, estabelece tão somente mais uma variante filosófica do idealismo, pois não há como escapar deste traço estrutural do materialismo, a saber, o de ser um epifenômeno do idealismo. Assim sendo, categorias exclusivamente conceituais como 'modo de produção', 'evolução dialética' do processo histórico, etc. são tomadas como instâncias ontologicamente existentes. Em outras palavras: o marxismo fatalmente se insere no quadro das filosofias estéreis que acreditam na realidade de 'Universais'.

- Isto posto como hipótese preliminar de desmonte do ilusionismo filosófico presente no marxismo, é mister reconhecer que a estreiteza esquemática do marxismo ortodoxo não logra, com efeito, dar conta de todo o espectro de causas por trás da jihad revolucionária islâmica no mundo hodierno. Ao apontar o fator econômico como elemento determinante na dinâmica da História, o pensamento marxista não atenta para o facto de que o conflito cultural - partindo da definição de 'cultura' como o conjunto de manifestações simbólicas de uma dada civilização ou nação - é também um fator de destacadíssima relevância. O 'motor da História' não pode, portanto, ser reduzido a uma única 'energia-matriz', resultando, ao contrário, de uma miríade de fatores, d'entre os quais o cultural se reveste de grande importância, assim como o econômico, o político, etc.

- Portanto, o que há de fecundo, de interessante no marxismo não é sua estrutura analítica do processo histórico, que se revela inconsistente e falha, mas sim seu significado como teoria política da ação revolucionária. E digo mais: deve-se ressaltar que um aspecto fundamental do marxismo é criminosamente ignorado por seus teóricos 'oficiais', vale dizer, o marxismo não como teoria, mas sobretudo como TEOLOGIA política da ação revolucionária; é preciso, pois, salientar o caráter inequivocamente MESSIÂNICO inerente a todo processo revolucionário. A revolução não é de modo algum uma categoria 'racional'.

- Nesse sentido, cito aqui algumas passagens de Glauber Rocha, um dos mais ousados e criativos pensadores revolucionários do Século XX , presentes em seu manifesto Eztetyka do Sonho(1971):


"Na medida em que a desrazão planeja a revolução, a razão planeja a repressão".

"A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza".

"A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo".

"As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das forças irracionais das massas pobres".

"A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora".


- Reparai, diletos confrades, que Glauber sintetiza de forma magistral a natureza messiânica e mítica da Revolução, a dimensão mística, irracional, imprevisível e emocional presente intrinsecamente em todo processo revolucionário. Dessa forma, a pretensão marxista de se formular como análise 'científica' do processo revolucionário é um completo absurdo, um retumbante non sequitur conceitual. A 'revolução' não é, portanto, como já adrede tantas vezes sublinhamos, um fenômeno que possa ser interpretado por uma analítica científica, isto é, que insira na esfera dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da razão científica; ao contrário, a revolução afigura-se muito mais como fenômeno de cunho mítico-religioso, impermeável a análises racionalistas.

- Não há como negar que o fundamentalismo islâmico desempenha hoje um papel revolucionário muito mais relevante que as modalidades tradicionais contempladas pelo pensamento marxista. A tipologia categorial estreita do marxismo não consegue, pois, compreender que Sheykh Usammah Bin Laden possa ser, como de fato o é, ao mesmo um 'warlord' medieval e um líder revolucionário insofismavelmente contemporâneo (mormente em sua notável consciência do poder cada vez maior da mídia eletrônica), ou seja,uma figura onde o arcaico e novo estão entrelaçados de forma indissolúvel.

- A perspectiva marxista, ao deixar de reconhecer o caráter legitimamente REVOLUCIONÁRIO do fundamentalismo islâmico, irá cometer mais um grave erro em seu já significativo legado histórico de trágicos equívocos.

Vladimir Putin: em busca do tempo perdido

Alphonse van Worden - 1750 AD






- Dadas as contradições estruturais (cf. revolução microeletrônica e superveniência crescente do capital especulativo sobre o setor produtivo) do vetor estatista do sistema produtor de mercadorias, que se avolumaram em progressão geométrica a partir dos anos 70 do século passado, China e URSS viram-se diante da inadiável necessidade de reformular suas economias, tendo em vista que suas tendências disfuncionais não paravam de se agravar.

- A República Popular da China, se calhar em virtude da onda de choque, tanto simbólico-institucional quanto político-administrativa, desencadeada pela morte de Mao Zedong em 1976, largou na frente, dando início, já em 1978, a um amplo programa de reestruturação econômica. Desde então, o processo chinês, ainda que com movimentos pendulares de maior ou menor intensidade, tem se caracterizado por um norte estratégico nítido: abertura econômica + manutenção do monopólio do poder político por parte do PCC. Trata-se, portanto, de liberalizar a atividade econômica, de flexibilizar relações trabalhistas e mecanismos de gestão, sem, contudo, renunciar ao controle operacional de todo o processo por parte do mandarinato vermelho. Assim sendo, todas as iniciativas de abertura econômica são estritamente condicionadas pelos desígnios e necessidades estratégicas do Estado chinês; há que frisar, aliás, o sucesso do regime na implementação dessa sutil dialética, pois o Partido não apenas conservou intacto o monopólio do poder, mas logrou fazê-lo ao mesmo tempo em que promove um duradouro ciclo de intensíssimo desenvolvimento econômico capitalista. Ainda que se possa indagar a propósito da viabilidade ulterior de tal dinâmica, ou seja, sobre por quanto tempo mais o PCC, que tão hábil vem se revelando na improvável dialética de, a um só tempo, centralizar o poder político e abrir a economia, conseguirá tão prodigiosa mágica socioeconômica, é mister reconhecer que, até o momento, tudo está ocorrendo conforme o talante do aparato dirigente.

- A URSS, por seu turno, deu início a um processo análogo em 1985, com o advento de Mikhail Gorbachev ao posto de Secretário-Geral do PCUS. A reformulação sistêmica soviética, através das políticas cunhadas por Gorbachev e seu mais notório 'guru', o diplomata Alexander Yakovlev, enveredou por uma perspectiva diametralmente oposta à dinâmica que ocorria no 'Império do Centro': enquanto a arguta liderança chinesa manteve intacta a capacidade operacional do PCC, submetendo a dinâmica de reformas ao imperativo estratégico mais amplo do Estado, Gorbachev tencionou revigorar a URSS por intermédio da liberalização política, afrouxando com isso os dispositivos de controle estatal. Tal iniciativa, com efeito, não apenas falhou miseravelmente em regenerar a combalida economia socialista, mas também mergulhou o país no caos absoluto, desestruturando a sociedade soviética em praticamente todos os níveis e esferas de ação: as vicissitudes no sistema de transportes e distribuição de mercadorias, eterno ponto de estrangulamento no gigantesco País dos Soviets, agravaram-se sobremaneira, elevando estratosfericamente os custos em todos os setores da economia; a agricultura, outro 'calcanhar-de-Aquiles' tradicional na história soviética, também entrou em colapso, desencadeando uma série de crescentes crises de desabastecimento; a indústria, outrossim, que já vinha perdendo competitividade e eficácia desde anos 70, foi sufocada pela vertiginosa espiral inflacionária, bem como pela progressiva desorganização dos mecanismos de gestão; os ressentimentos ancestrais contra a 'Mãe Rússia', arraigados em quase todas as nacionalidades agregadas sob o pavilhão soviético, e que até então se conservavam mais ou menos represados pelo poder central, explodiram com grande violência no bojo da 'redemocratização', abalando os pilares do aparato estatal soviético. Assim sendo, o desenlace de tão ominosa dinâmica, conjugando anarquia econômica e 'liberalização' política caótica e irresponsável, não poderia ter sido outro: em 1991, apenas 5 após sua implementação, a demoníaca obra de destruição levada a cabo por Gorbachev conseguiu, enfim, dissolver a URRS.

- Com o advento da era Yeltsin, em 1991, célere propagou-se a metástase do câncer socioeconômico instaurado por Gorbachev. A ausência de uma gestão veramente democrática no seio do aparato partidário e da máquina estatal, questão que de modo algum foi solucionada pela glasnost, possibilitou a emergência de uma burocracia rapace e parasita; e com o fim da URSS, num contexto de severa deterioração da economia, foi possível constatar a consumação lógica deste processo, uma vez que, com a privatização em massa das empresas estatais, a classe de administradores públicos de imediato converteu-se em empresariado privado, havendo apenas uma transferência jurídico-formal da propriedade. Ao nos debruçarmos, pois, sobre o ciclo de privatização acelerada da economia que se deu com a ascensão de Boris Yeltsin, constataremos que grande parte da antiga burocracia gerencial soviética, tanto em termos de setor industrial quanto de financeiro, converteu-se maciçamente em classe proprietária. A expropriação econômica desencadeou-se portanto como epifenômeno lógico-empírico de um processo de expropriação política que já havia se forjado décadas atrás. O estamento administrativo transformou-se, com efeito, em alta burguesia proprietária; e se examinarmos mais acuradamente o fenômeno em tela, veremos que se trata, na verdade, não de uma metamorfose estrutural, mas sim de uma transferência maciça de titularidade nominal, uma vez que os meios de produção já estavam informalmente sob controle total de uma parcela de burocratas. Constituiu-se, assim, a famigerada casta de poderosos oligarcas intimamente ligados ao Kremlin, levando a efeito toda sorte de operações ilegais (tráfico de ópio através do Mar Negro, inclusive) sob o manto protetor da corrupção que tomou conta da administração pública em todas as esferas. E como se não bastasse, Yeltsin, atuando como infame gendarme a serviço das potências ocidentais, reprimiu duramente o conjunto das forças políticas nacionalistas durante a chamada ‘crise constitucional’ de 1993: sob a audaz liderança do vice-presidente Aleksandr Rutskoy e do deputado Ruslan Khasbulatov, o Soviet Supremo insurgiu-se contra o poder executivo num esforço desesperado para deter o sórdido processo de aniquilação do país capitaneado por Yeltsin, que tragicamente, com a colaboração da corrompida alta cúpula das forças armadas, sufocou o levante e instaurou definitivamente a traição nacional como ideologia vigente.

- É nesse cenário de ‘terra devastada’ que emerge na vida política russa, em meados dos anos 90, a figura de Vladimir Vladimirovich Putin. Vice-prefeito de São Petersburgo na primeira metade da década, diretor da FSB (ex-KGB) entre 1998-99, Putin foi nomeado por Yeltsin primeiro-ministro da Rússia em setembro 1999, vencendo em seguida as eleições presidenciais em 2000. A princípio não nos pareceu, há que salientar, que o ex-tchekist faria uma gestão essencialmente distinta do catastrófico legado de seu antecessor. Açodadamente julgávamos que Putin não teria condições, ou até mesmo vontade política, de empreender um esforço sério e resoluto de soerguimento político-econômico da Rússia, mormente em virtude da correlação de forças desfavorável ao país na esfera geopolítica internacional; não obstante, já em 2001, muito embora cometesse, em termos de política externa, o grave erro de apoiar a intentona imperialista contra o Afeganistão, seu governo emitiria o primeiro sinal positivo de caráter inequívoco: a abertura de processos por corrupção, evasão fiscal, desvio de recursos públicos e outros ilícitos contra os principais elementos da camarilha de oligarcas yeltsinistas, Boris Berezovsky e Mikhail Khodorkovsky, assestando assim um rude golpe nos setores mais entreguistas e antipatrióticos do panorama político russo. Putin também condenaria, nos termos mais acerbos, a invasão do Iraque em 2003, no esteio da implementação, a partir de 2002, de uma política externa mais soberana, agressiva e antiimperialista, em flagrante contraposição à postura gorbachevista / yeltsinista de humilhante submissão aos desígnios do Ocidente. No plano interno, é mister sublinhar que Putin levou a efeito um amplo programa de reorganização e dinamização da economia, aumentando os investimentos estatais tanto em infra-estrutura quanto em setores de tecnologia de ponta, estimulando assim a atividade produtiva de uma maneira geral; no que tange ao bem-estar da população, sua administração tem se empenhado em resgatar a ciclópica dívida social acumulada pelos governos de Gorbachev e Yeltsin, implementando numerosos programas de auxílio a aposentados, desempregados, mães solteiras e demais parcelas da população cruelmente desassistidas nos últimos 15 anos; em termos culturais, por fim, é nítida a adoção de toda uma estratégia de ação governamental no sentido ressuscitar o secular orgulho nacional russo, o que se reflete numa sutil mas emblemática orientação ideológica eslavófila (não por acaso, consoante se pode constatar, figuras de proa da ‘revolução conservadora’ russa, como o ínclito Aleksandr Dugin, por exemplo, adotam uma sagaz atitude de apoio crítico a Putin); há também, outrossim, o intuito de reforçar a presença da fé ortodoxa na vida do país, o que revela, vale dizer, o descortino psicológico de Putin, pois não há como reerguer a Rússia senão através da revitalização de suas matrizes espirituais.

- A eleição, sob os auspícios do presidente Putin, de Dmitri Medvedev em março último, sinaliza, queremos crer, a continuidade do processo adrede esboçado.Que o novo mandatário possa, destarte, dar prosseguimento ao polifônico e ambicioso movimento de reconstrução nacional iniciada por seu mentor, pois É preciso, pois, recuperar o tempo perdido, para que assim a Rússia enfim volte a ocupar plenamente o plano de destaque que lhe cabe no concerto das nações e, acima tudo, fazer com que a sempiterna Rodina reencontre seu destino glorioso e triunfal.

Moksha

AVISO AOS CONFRADES:


Ó supinos confrades e egrégios irmãos d’armas, saudações nacionais bolcheviques a todos. Conforme o pedido de alguns amigos, reuni parte de outros artigos e de mensagens que postei em forums para esclarecer alguns pontos sobre o jivan-mukta, pontos que ficaram um tanto obscuros após as manifestações desrespeitosas de uma Tenebrosa Personagem brazuca, inimiga da Tradição. Recomendo antes a leitura deste pequeno texto.

Começarei o esclarecimento por um antigo estudo que fiz do Śrīmad Bhāgavatam há alguns anos. No começo, pode parecer um pouco prolixo explicar os modos de natureza material, para depois entrar no que de fato interessa. No entanto, é impossível compreender essa questão sem antes compreender estes fundamentos do hinduísmo.


“A influência da natureza material não pode afetar uma alma iluminada, ainda que ela participe de atividades materiais, pois ela sabe a verdade sobre o absoluto, e sua mente está fixada na Suprema Personalidade de Deus.” - Śrīmad Bhāgavatam, 3,27-3


Segundo os Vedas, a consciência material é a causa da vida condicionada. É a consciência material, a vontade de desfrutar, que força uma entidade a obter uma existência material. Outrossim, os sentimentos de felicidade e tristeza, transcendentais por natureza, são causados pelo próprio espírito. O mundo material, tido como uma grande floresta de desfrute, é o local onde o ser-vivo caiu por desejar o desfrute, e por causa disso, está sujeito aos três modos da matéria condicionada. A paixão cria, a bondade sustenta e a ignorância destrói. Toda alma está sujeita aos três modos de existência material:


“A bondade prevalece pela supressão da paixão e da ignorância; a paixão prevalece pela supressão da bondade e da ignorância, e a ignorância prevalece pela supressão da bondade e da paixão, Ó Arjuna.” - Bhagavad-Gita, 14,10


A poluição da consciência faz a alma se apegar nas ações físicas, de ações e reações comandadas pelas três formas de natureza material. O verdadeiro propósito, então, é se libertar dessa ilusão material, para voltar ao mundo espiritual, que foi deixado devido à vontade de desfrutar. O estado homem que esquece do espiritual, para desfrutar do mundo material, é comparado ao sono, pois assim como os prazeres que vemos nos sonhos são meras criações mentais, irreais, também este desfrute terreno é uma mera ilusão sem qualquer existência permanente.

Roubo, estupro, maus governantes, assassinatos, enganação, avareza, exploração: tudo isso nasce da necessidade de todos que passam para a vida material de desfrutar. Os conflitos nascem dessa necessidade, já que os interesses dos que desejam apenas desfrutar sempre é conflitante, e muitos, iludidos pelos sentidos, não conseguem escapar de suas ilusões, e tornam-se cada vez mais apegados a tais desfrutes.


“Os sentidos materiais criam as atividades materiais, tanto piedosas como pecaminosas, e os modos da natureza colocam os sentidos materiais em movimento. O ser-vivo, totalmente engajado pelos sentidos materiais e modos da natureza, experimenta os diversos resultados do trabalho fruitivo.” - Śrīmad Bhāgavatam 11,10

Tal caráter de deleite do mundo material fica muito claro na seguinte passagem:

“Quando o Rei Parīkṣit perguntou a Śukadeva Gosvāmī sobre o significado da floresta material, Śukadeva Gosvāmī respondeu assim: Meu querido rei, um homem que pertence à comunidade comercial está sempre interessado em ganhar dinheiro. Algumas vezes ele entra na floresta para adquirir algumas mercadorias gratuitas como árvore e terra para então vendê-las na cidade por um bom preço. Da mesma forma, a alma condicionada, pela avidez, entra neste mundo material em busca de algum benefício material. Gradualmente, ela entra nas profundezas da floresta, sem saber como sair. Ao entrar no mundo material, a alma pura torna-se condicionada pela atmosfera material, que é criada pela energia externa sob o controle do Senhor Viṣṇu. Assim as entidades vivas ficam sob o controle de uma energia externa, daivī māyā. Vivendo sozinha e confusa na floresta, ela não consegue obter a associação dos devotos que estão sempre engajados no serviço ao Senhor. Já na concepção corpórea, ela recebe diferentes tipos de corpos sucessivamente sob a influência da energia material e impelida pelos modos de natureza material. Assim a alma condicionada caminha algumas vezes para planos celestiais, outras para planos terrenos e algumas vezes para planos baixos e de espécies inferiores. Assim, seu sofrimento continua devido aos diferentes tipos de corpos. Estes sofrimentos e dores são misturados algumas vezes. Algumas vezes tais coisas são muito severas, outras não. Estas condições corpóreas são adquiridas devido às especulações mentais da alma condicionada. Ela usa sua mente e os cinco sentidos para adquirir conhecimento, e isso produz os diferentes corpos e condições. Usando os sentidos sob o controle da energia exterior, māyā, a entidade viva sofre as misérias da condição de existência material.Ela que de fato busca pro alívio, é geralmente desnorteada, embora algumas vezes consiga algum alívio após grandes dificuldades. Lutando pela existência neste caminho, ela não pode alcançar o abrigo dos devotos puros, que são como abelhas engajadas no serviço amoroso nos pés de lótus do Senhor Viṣṇu.” - Śrīmad Bhāgavatam, 5,14



Ao entrar na floresta, em busca de desfrute, a alma fica sujeita aos três modos da existência material. É a busca pelos benefícios da floresta que irá causar as dores e lamentações da alma.
A combinação desses três modos, que é a causa da existência material, é chamada de pradhāna. Quando manifestada no estado da existência, é chamada de prakṛti. Pradhāna é a reunião dos cinco elementos grosseiros, os cinco sutis, os quatro internos, os cinco de conhecimento e os cinco órgãos de ação exterior.


Os elementos grosseiros são: água, terra, fogo, ar e éter. São os sutis: cheiro, tato, cor, paladar e audição. Os sentidos de adquriri conhecimento e dos órgãos são: sentido de audição, sentido de paladar, sentido de tato, sentido de visão, sentido de olfato, o órgão ativo da fala, os órgãos utilizados para trabalho, e também os utilizados para viajar, procriar e evacuar.


A natureza material consiste de três modos: da bondade (sattvam), paixão (rajas) e ignorância (tama). A alma iluminada não é afetada por estes três modos, pois ao obter o conhecimento transcendental, ela deixa de ser influenciada por estes três modos da existência material, por já ter se fixado na Suprema Personalidade de Deus.

“Ó Arjuna, o modo da bondade prende alguém à felicidade do estudo e conhecimento do espírito; o modo da paixão prende à ação; e o modo da ignorância prende por negligência, pelo encobrimento do auto-conhecimento.” - Bhagavad-gītā , 14.09

O modo da bondade liberta das atividades pecaminosas, leva à felicidade, desenvolve o verdadeiro conhecimento, e aquele que morre no modo da bondade, é levado para os mais altos planos dos grandes mestres. Embora ainda seja um modo de natureza material, o modo da bondade não é pecaminoso, pois é “o mais puro do mundo material” (nirmalatvāt). O homem neste estado é menos afetado pelas misérias da existência material. O sacrifício do que está no modo da bondade é feito conforme as Escrituras, com fé e convicção firme de que ele é uma obrigação.


Neste modo, as aflições e confusões da alma condicionada são aliviadas. Embora seja um estado da alma condicionada, e portanto, do ser-vivo que buscou o desfrute, é um estado elevado por seu apego ao conhecimento, é o que faz desenvolver o verdadeiro conhecimento.

O modo da paixão, que nasce do desejo, e produz apego, desejo por ouro, e também gula, luxúria, mesquinharia, ambição. Tudo que é feito no modo da paixão resulta em miséria. Por esta razão, os brahmanas não devem tomar atitudes ou decisões no modo da paixão, pos ele é incompatível com o estado de sábio ou sacerdote, e muito menos viver neste estado. Os kshatriyas e vaishyas vivem entre o modo da bondade e paixão. Quanto maior é este modo, mais anseio a alma sente pelo desfrute, e mais sofrimento ela terá.

No modo da ignorância, o modo da escuridão, a alma é levada à loucura e ilusão. É o modo daquele que vive distraído pela preguiça, indolência. Neste estado, a alma não pode diferenciar o certo do errado, qual é seu objetivo ou se está cometendo atividades pecaminosas. Esta alma adora os demônios, oferece sacrifícios sem seguir as Escrituras, seja por egoísmo, hipocrisia e auto-satisfação.

“Assim os descendentes dos macacos misturam-se entre si, e eles são normalmente chamados de śūdras. Sem hesitação, eles vivem libertinamente, sem conhecer o objetivo da vida. Eles são condenados a ver apenas um a face do outro, que vos relembra o sentido da gratificação. Sempre engajados em atividades materiais, conhecidas como grāmya-karma, trabalham duro para benefício material. Desta forma esqueceram completamente que um dia suas expectativas de vida irá acabar e então serão degradados no ciclo evolutivo.” Śrīmad Bhāgavatam, 5,14


Na existência material, os sentidos são os maiores adversários do homem. Mesmo nas boas ações, sentidos como o da auto-gratificação podem arruinar as coisas boas. Pela necessidade de satisfazer seus instintos (visão, olfato, paladar, tato, audição, desejo e vontade), o homem ainda desvia aquilo que não era seu para satisfazer seus sentidos.

Por esta razão, apenas a alma iluminada, livre das tentações do sentido, consegue viver no mundo material sem ser atraída ou enganada pelos sentidos. Como confirmação, do que foi explicado e da citação do Śrīmad Bhāgavatam (3,27-3) no cabeço deste texto, coloco o ensinamento do Mahārāja Rahūgaṇa ao Rei Rahūgaṇa, sobre o que ele deveria fazer para escapar do ciclo de fuga e volta às perigosas posições sujeitas à alma condicionada.

“Meu querido Rei Rahūgaṇa, vós também és uma vítima da energia exterior, pois estás no caminho de atração dos prazeres materiais. Então, para que possais tornar-se um amigo justo a todas as entidades, aconselho-te a desistir da vossa posição real e da verga que usas para punir criminosos. Desistas da atenção aos objetos sensíveis para segurar a espada do conhecimento afiada pelo serviço devocional. Então, serás hábil para cortar o duro nó da energia ilusória e cruzar para o outro lado do oceano da existência espiritual.” - Śrīmad Bhāgavatam 5,13

Tudo que ocorre no modo material é consequência do desejo, aflições e necessidades. A fome a sede causam fúria, falta de paciência. Muitas vezes a noção de que o apreço às sentidos de desfrute é esquecido pela própria corrida aos gozos materiais. A ansiedade, pelo medo de perder posição de prestígio, também faz a alma não conseguir escapar e cair nas armadilhas da ilusão.

A incompatibilidade de atividades como de guerreiro e rei, com a busca da transcendência, se da pelo fato da própria atividade de punir causar danos à alma condicionada do castigador, prendendo-o ainda mais nas ilusões do modo de vida material.

Jivan-mukta


Como expliquei no texto acima, o Vedanta considera essa manifestação como um estado de desfrute material, simbolizado também pela exílio de Rama e Sita na floresta, e o clamor de Sita para voltar é a mente que implora pelo despertar. Portanto, a ciência dessa libertação não pode ser baseada unicamente na razão, pois está além dos limites da existência humana: exigir que algo colocado como além da existência limitada seja explicado exclusivamente segundo os preceitos dessa existência limitada é um absurdo.

Desta forma, a realização e transmissão dessa ciência da auto-realização é feita da seguinte forma:

Através dos Vedas, divididos em quatro compilações:

1. O Rig Veda, formado por hinos poéticos.

2. O Yajur Veda, hinos sobre como fazer os rituais.

3. O Sama Veda, hinos musicais.

4. O Atharva Veda, que trata de diversos assuntos.


Juntos, os vedas são chamados de Karma Kanda. Depois deles, temos o Jnana Kanda, que formam a parte “filosófica” ou “metafísica”. Desta forma, podemos dividir assim:

Karma Kanda => ritualístico, a porção litúrgica, e que também guia a conduta harmoniosa e estrutura do universo (karma) e a adoração das deidades e do Senhor Supremo.
Jnana Kanda => o tratado “metafísico”, erradamente tratado como a parte "mística" (aqui no Ocidente não são poucos que consideram os Upanishads as explicações "místicas" do hinduísmo).

Em seguida, há o material interpretativo, Shastra, formado por Smirit, Vartika, Prakarana e Bhasya, formado pelos mestres, rishis e sábios ao longo do tempo.

Outrossim, o modo da bondade não é o bem supremo, mas sim o caminho mais elevado para a libertação final, então o Karma Kanda é uma preparação para o Jnana Kanda: eis porque o liberado, além de ter que nascer com a qualificação necessária para atingir moksha não pode também ser colocado como um iluminado desde cedo: embora a qualificação, recebida conforme o merecimento de manifestações anteriores, precisa ser realizada, e só será realizada se percorrido um dos diversos caminhos de realização.

O Karma Kanda prescreve os deveres para se obter as bênçãos do mundo, que em até certo pontos da caminhada são necessários (saúde física e mental, por exemplo), até chegar no ponto de Jnana Kandra.


Neste ponto, shastra prescreve o varnahsrama dharma, que são as formas de realização segundo as possibilidades do homem: brahmacharya asharam (vida monástica sob a supervisão de um guru), grahasthasharama, que é a vida de casado como sacerdote, mestre ou comerciante, vanaprastha asharama que é a vida de retiro na floresta e sanyasan, que é o estudo dos segredos do Jnana Kanda.


Através de um desses caminhos, aquilo que deve ser realizado é realizado, para que a liberação seja obtida. Embora a condição ou qualificação seja "inata", somente através desses estágios esta qualificação será plenamente realizada.

No Vedanta, é a qualidade ahampratyaya da mente (antahkarana, que além de ahampratyaya é formada por budhi, manna e sita). É de ahampratyaya a faculdade de pensar “eu fiz isso, eu entendi isso". O Vedanta entende que há uma diferença entre o verdadeiro Eu e a mente. Sabemos que nossos pensamentos são passageiros, somem da mesma forma que apareceram, e portanto, são mutáveis. A mente, portanto, não é identificada como o verdadeiro eu, pois se ela é formada por faculdades passageiras e mutáveis, aquilo que nos textos sagrados é colocado como livre de mudança, destruição e etc não pode ser algo que sofre alterações e destruição.


O verdadeiro eu, portanto, é uma consciência inalterável, aquela que é conhecedor e conhecido ao mesmo tempo, e é este eu que tudo conhece, é âtma.


“Deve-se entender que Âtma é sempre como o rei, diferente do corpo, sentidos, mente e intelecto, de tudo que constitui a matéria (prakriti) e testemunha suas funções.” – Âtma Bodha, Shankaracharya

O Taittiriya Upanishad define Brahman como Satyam, jnanam, anantam – Real, Consciente, Infinito. Ao conhecer Brahman, e realizar que âtma é Brahman, o Universo todo é revelado, saha brahmana vipashchita - desfrutar Brahman é desfrutar o Universo.

“Diz o guru: Um jivanmukta que alcançou o imperecível Turiya jamais é afetado pelos pares de oposição. Sempre está em Sat-Chi—Ananda Swaroppa. Ele perambula pela felicidade.” – Brahma-Sutra


O jivan-mukta, ainda que "vivo" em um corpo, não percebe mais o universo material com a limitação e expansão de Maya: é uno com Brahman na visão do Universo como uma só manifestação de Brahman. Ao atingir moksha em vida, o jivan-mukta já não age mais segundo os instintos, mas sim num movimento cósmico, e até que se torne um nitya-mukta e o Prarabdha Karma se desfaça.



Enquanto esse karma não é encerrado, o jivan-mukta embora já possua a visão de todo o universo como Brahman, ele ainda precisa cumprir aquilo que foi adquirido pela vontade de desfrutar.

Um exemplo do próprio hinduísmo: um caçador atinge uma vaca, pensando que ela fosse um tigre. Ao se aproximar e notar que não era um tigre, mas uma vaca, o caçador já tem a visão da realidade: ele acertou uma vaca, e não o tigre. Mas isso não trará a vida da vaca de volta. Amém?

Na solidão viva com alegria,

Aquiete sua mente no Senhor Supremo.

Realize e veja o Ser Onipotente em todo canto.

Reconheça que o Universo finito é uma projeção do Ser.

Conquiste os efeitos dos atos feitos em estados anteriores pela ação correta.

Através da sabedoria livre-se das ações futuras (agami).

Experimente e extingue os frutos das ações passadas (prarabdha)

Depois, viva absorto em bhav – “Eu sou Brahman”!

Sadhana Panchakam, Shankaracharya


Passando agora para as outras Tradições, vemos motivos suficientes para concluir que há doutrina semelhante no Cristianismo, Budismo, Taoísmo e Islamismo. O estado do hesicasta, aquele que vê as Energias Divinas incriadas, é semelhante ao que descreveu Shankaracharya:

Muitas escolas, do vaishnavismo ao budismo, buscaram refutar as exposições de Adi Shankaracharya. Dentro do hinduísmo, as mais conhecidas são as Vishishtadvaita e Dvaita. Segundo os estudos que fiz até hoje, a que chega mais perto de lograr algum êxito é a refutação de Ramanujacharya, principalmente a contida no Vedanta Sutra. No Vedanta Sutra, Ramanujacharya busca refutar diversas afirmações do advaita sobre ser e consciência, a não-existência de diferentes substâncias e outros propugnáculos do advaita.

Para Ramanuja, se há uma substância além de toda diferenciação e que é também o verdadeiro conhecimento, há então uma contradição capital: através do próprio testemunho do Ser sabemos que toda consciência implica diferença, pois todos os estados de consciência possuem coisas que são diferenciáveis no julgamento das próprias coisas. A percepção também ocupa um papel fundamental no argumento de Ramanuja, pois todo conhecimento ocorre através da distinção, entre o determinado e não-determinado, o julgamento “isto é isto, aquilo é aquilo”, é tido como o conhecimento de uma coisa pertencente a uma classe, o não-determinado como o conhecimento da primeira coisa que pertence à alguma classe, e o determinado que é o conhecimento das seguintes, portanto, todo conhecimento é obtido através de alguma distinção.

Portanto, o som (sabda) também denota diferença, pois a palavra (pada), a união de um radical e um sufixo, possui dois significados diferentes , portanto o próprio sentido da palavra é afetado pela diferança, como a sentença que conforme a combinação de palavras e significados denotam a falta de algo que não possui qualquer diferenciação.

Muito embora tal refutação pareça muito lógica, o advaita possui respostas muito satisfatórias a ela. Os Upanishads demonstram um Brahman sem distinção, sem qualidades, sem sentimentos, sem forma, auto-suficiente e não-dual (advayam).

“a natureza de Paramatma que é manifestada na metne, indivisa, não-dual, testemunha de toda, distinta de toda causa e efeito, pura…” - Taitirya Upanishad II,1

“Sou distinto de todo sujeito, objeto e instrumento. Em todos os três estados - jagrat, swapna e sushupti - sou a testemunha que é a pura consciência e que é sempre auspiciosa.” - Kayvalya Upanishad, XVIII

“Vejo sem olhos, escuto sem ouvidos. Assumo várias formas, eu sei de tudo. Não há ninguém que Me conheça. Eu sou a eterna consciência pura”. - Kayvalya Upanishad, XXI

Mesmo Ramanuja sabia que tentar “derrubar” o Advaita Vedanta através do argumento da impossibilidade do jivanmukta possuir a Onipotência na natureza material não procedia: Muitos sadhus e até adoradores de Kali (que vivem no modo da ignorância) possuem sidhis mais desenvolvidos que muitos mestres legítimos que alcançaram moksha. No entanto, jamais atingirão a liberação enquanto prosseguirem em uma atividade geradora de karma.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Bardo Thodol


Ó imortal, vós que fostes chamado! A hora de encontrar o caminho na realidade do espírito chegou. Vossa respiração física parou; a perfeita luz do Potencial Infinito da primeira fase de vossa transição para a realidade espiritual já é manifesta. Vossa respiração física parou e agora estás a experimentar o desperto, puro e vazio; de forma que não percebes centro ou horizonte. Reconheças de imediato este vazio como vossa existência. Agora permaneças centrado nesta experiência.

Sobre o Não-Ser

O ponto chave dos erros de Guénon - que até hoje ninguém neste mundo parece ter enxergado, nem mesmo seus concorrentes da escola schuoniana - é de natureza puramente metafísica: está na sua doutrina do Não-Ser e das ‘possibilidades de não-manifestação’. Esclarecida e derrubada essa doutrina intrinsecamente absurda, manifestam-se os verdadeiros pontos de discordância entre cristianismo e guénonismo, bem como sua via de conciliação. Explico isto mais extensamente em meu Diário Filósofico. – Olavo de Carvalho, nota de rodapé em “O Jardim das Aflições”

Primeiramente, porque Olavo considera absurda a doutrina do Não-Ser e das possibilidades de não-manifestação? Isso pode ser explicado através de outra explicação de Olavo:

E Deus? Se imaginarmos um Deus transcendente ao universo, um Deus que não fosse o próprio Universo, mas que estivesse fora dele, estaria Ele fora necessariamente e sempre, ou seria um aspecto transcendente do próprio Universo? Ora, é claro que Ele é um aspecto do Universo que não pode se reduzir a nenhuma de suas partes e que é de certa forma transcendente a si mesmo, porque inclui toda a possibilidade ainda não realizada no universo físico. Essa possibilidade existe, e ela tem de se autoconhecer. Imagine se assim não fosse: a possibilidade transcendente que desconhece a si mesma e que só nós, seres humanos, conhecemos…Logo, é claro que o Universo se conhece. A parte dele que se conhece mas que não está realizada ainda, e que talvez não se realize nunca, nós chamamos de aspectos transcendentes de Deus. Para ser transcendente, não é preciso ser transcendente a tudo. - Olavo de Carvalho

Ora, as possibilidades de manifestação e as impossibilidades de manifestação, juntas, compõem o domínio propriamente dito do Ser, nada sobrando para além dele senão um conceito vazio. Na verdade a expressão Não-Ser só vale como figura de linguagem, para designar os aspectos superiores e mais sublimes do Ser mesmo, seu lado misterioso e eternamente desconhecido, ou imanifestado, portanto qualidades do Ser e não uma outra entidade substancialmente distinta. Creio que o próprio Guénon não ignorava isso. Alguns de seus colaboradores preferiram mesmo usar em vez de Não-Ser a expressão Supra-Ser para designar o Brahman, o eternamente imanifestado, distinguindo-o de Ishwara, o Ser manifestado. Isso basta para eliminar toda confusão a respeito. - Olavo de Carvalho, Diário Filosófico

Quando se usa a expressão ’ser supremo’, se altera totalmente aquilo que Deus é: origem de todos os seres. Por que existe o ser e não antes o nada? Se se coloca essa pergunta, existe um ser, um nada, e uma causa. Essa causa não é nem um ser, nem o nada. Isso jamais foi contestado. A existência de Deus é inerente à própria existência. O poder que gera a existência não é uma primeira causa que está atrás de uma série de causas. Ele é inerente à existência mesma. A primeira causa já seria um ser, já seria uma existência. Se você enxerga Deus como a possibilidade da existência, não se pode usar a palavra ’ser’ para Deus. Todo religioso tem de saber disso. A pessoa que não é capaz de raciocinar em termos da totalidade da existência, evidentemente não pode entender do que estão falando, aí ela inventa uma coisa chamada ’ser supremo’, um ’serzão’, que não é a definição de Deus. Isso virou um ser que cria outros seres. Mas então, quem criou o primeiro ser? Deus é a possibilidade universal, a onipotência. Se você o define como ’ser’ e tem de provar a existência ou inexistência do mesmo, você está num mato sem cachorro. Seriamente falando, não se discute a existência de Deus. A existência está sempre presente. Conceber a possibilidade hipotética da inexistência de tudo é a condição de perceber o poder da existência, a presença da existência. E perceber essa existência é perceber Deus. Os ateus não acreditam num ’ser supremo’, mas acreditam na existência. Sendo assim, eles não são ateus. A discussão entre ciência e religião é muito primária, é uma vergonha. A onipotência, a presença da experiência está aí, mas você não pode obrigar uma pessoa a olhar para lá, não se pode provar nada.
- Olavo de Carvalho

Para resumir a doutrina do Não-Ser, antes de começar a defender o ponto de Guénon criticado por Olavo, podemos dizer da seguinte forma: o Não-Ser é todo atributo divino que jamais se manifestará, como a unicidade. A afirmação que Deus não é pode parecer absoluta a princípio, mas, quando esclarecemos o que Guénon entendia como o Não-Ser, bem como buscamos nas fontes da Tradição, a base das pesquisas de Guénon, notamos que Guénon não estava distante do Cristianismo nem da Tradição no que diz respeito a essa doutrina.

…Para designar o que está assim fora e além do Ser, estamos obrigados, na falta de outro termo, a chamá-lo Não-Ser; e esta expressão negativa, que, para nós, não é, em nenhum grau, sinônimo de «nada» como parece sê-lo na linguagem de alguns filósofos, além de estar diretamente inspirada pela terminologia da doutrina metafísica extremo-oriental, está suficientemente justificada pela necessidade de empregar uma denominação qualquer para poder falar disso, junto à precisão, feita já mais atrás, de que as idéias mais universais, sendo as mais indetermináveis, não podem expressar-se, na medida em que são expressáveis, senão por termos que são, com efeito, de forma negativa, assim como vimos no que concerne ao Infinito… - René Guénon, Estados Múltiplos do Ser - Cap. III

Que diversos padres cristãos escolheram a via apofática para tratar de Deus não é segredo a ninguém.

…Não tem corpo, nem figura, nem qualidade, nem quantidade, nem peso. Não está em nenhum lugar. Nem a vista nem o tato o percebem. Não sente nem a alcançam os sentidos. Não sofre de desordem nem perturbação procedente de paixões terrenas. Que os acontecimentos sensíveis não a escravizam nem a reduzem à impotência. Não necessita de luz. Não experimenta mudança, nem corrupção, nem decaimento. Não se lhe acrescentar ser, nem ter, nem coisa alguma que caia sob o domínio dos sentidos… -Dionísio Areopagita. Teologia Mística, Cap.1

E no budismo:

…Desta maneira, Shariputra, na vacuidade não há forma, não há emoção, não há percepção, não há manifestação, não há consciência; não há olho, não há ouvido, não há nariz, não há língua, não há corpo, não há mente; não há aparência, não há audição, não há olfato, não há paladar, não há tato, não há darmas, não há datu da visão, e assim por diante até chegarmos a: não há datu da mente, não há datu de darmas, não há datu da consciência da mente; não há ignorância, não há extinção da ignorância, e assim por diante até chegarmos a : não há velhice e morte, não há fim para a velhice e a morte; não há sofrimento, não há origem para o sofrimento, não há cessação do sofrimento, não há caminho, não há sabedoria, não há realização,e não há não-realização… - Sutra do Prajnaparamita

O que Olavo quis dizer com “… Creio que o próprio Guénon não ignorava isso. Alguns de seus colaboradores preferiram mesmo usar em vez de Não-Ser a expressão Supra-Ser para designar o Brahman, o eternamente imanifestado, distinguindo-o de Ishwara, o Ser manifestado. Isso basta para eliminar toda confusão a respeito…” ? Aqui, precisamos fazer uma ressalva importante: a idéia de dois Brahmans, apara Brahman e para Brahman, um manifestado e condicionado por Maya (apara Brahman), outro o ser transcendental e livre de toda dualidade (para Brahman), não é uma idéia criada por Guénon, mas sim presente no hinduísmo. Costuma-se dizer que ao tentar qualificar para Brahman com qualquer atributo, ainda que infinitos, já não está mais se tratando de para Brahman, mas sim de apara Brahman. Outra vez, temos o que pode parecer um absurdo ou uma contradição gritante, e de fato, aos mais acostumados ao aristotelismo, essas exposições do hinduísmo soam absurdas. No entanto, faz-se mister relembrar que Guénon era um expositor da doutrina Tradicional, e seu fundamento era a Tradição, que lhe dá boa razão, vejamos alguns exemplos:


O que não pode ser visto chamamos invisível

O que não pode ser escutado, inaudível

Quando tocamos e não sentimos, dizemos que é impalpável.

Esses três objetos não podem ser sondados

desta forma, confundem-se e são considerados como uno..


…Sua origem está lá onde não existe qualquer ser.

Sua forma é sem forma, sua figura sem figura.

Ele é o indeterminado… - Tao Te King, 14

Com relação a Ele não há antes, nem depois; nem alto nem baixo; nem perto, nem longe, nem como, nem o que, nem onde, nem estado, nem sucessão de instantes, nem tempo, nem espaço, nem ser. Ele é tal como é. Ele é o Único sem necessidade da Unidade. Ele é o singular sem necessidade da Singularidade. - Ibn Arabi, Tratado da Unidade


Prosseguindo, portanto, em nossa ascensão, afirmamos que [a Causa] não é alma, nem inteligência, não possui imaginação, nem opinião, nem palavra, nem pensamento, não é palavra ou pensamento; não é objeto de discurso, nem de pensamento; não é número nem ordem, nem grandeza, nem pequeneza, nem igualdade, nem desigualdade, nem semelhança, nem dessemelhança; não está parada nem se move, não repousa, não possui uma força, nem é uma força; não é luz, não vive e não é vida; não é essência, nem eternidade, nem tempo; não admite sequer um contato inteligível; não é ciência, nem verdade, nem reino, nem sabedoria; não é uno, nem unidade, nem divindade, nem bondade, não é tampouco espírito, segundo sabemos; não é filiação, nem paternidade, nem quaisquer das coisas que podem ser conhecidas por nós ou por qualquer outro ser; não é nenhum dos não-seres e nenhum dos seres, nem mesmo os seres conhecem-Na enquanto existe; [a Causa] tampouco conhece os seres enquanto seres. Não é razão, nome ou conhecimento, não é treva, nem luz; erro ou verdade; não se Lhe aplicam afirmações ou negações: quando negamos ou afirmamos os seres que Lhe são posteriores, não A afirmamos, nem A negamos. A Causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de toda afirmação, e a excelência dAquele, que está absolutamente separado de tudo que supera toda negação. - Teologia Mística, São Dionísio o Aeropagita, Tradução de Marco Lucchesi, Editora Fissus, 2005, Rio de Janeiro.

A exposição de Guénon está completamente de acordo com o Advaita Vedanta. Swami Krishnananda explica que o universo é a negação de Brahman, um Brahman distorcido. Shankara ensina que o mundo aparece como real assim como uma corda é confundida com uma cobra. Enquanto a ilusão se faz presente, aquele cordão é para o vidente uma cobra real, mas quando a ilusão se esvai, a cobra deixa de ser real. O mesmo se passa com o mundo manifestado. Dois poderes de Maya, o da extensão e limitação, trazem a existência do mundo. O da extensão ao criar uma existência isolada, que atribui o testemunho do ser, a divisão entre vidente e a visão, e a limitação ao dividir o eterno do mundo, que é a causa do samsara.

No plano samsárico, e portanto segundo a interpretação temporal, um homem ignorante é aquele descrito como o sujeito que, após nascer, não consegue compreender que a lei do mundo é dukkha, que não pode ver sua origem, nem se libertar disso ou seguir pelo caminho que a liberação é obtida: a ignorância é desta forma a ignorância das quatro verdades de ariyan. Ao ser determinado por asava, pela intoxicação ou mania, essa ignorância particular estabelece um estado samsárico de existência e determina o substratum (upadhi) que lhe protege. - Julius Evola, A Doutrina do Despertar

No planos de existência mundana (vyavaharika satta) e ilusória (paramartikha satta), ocorre esse jogo entre extensão e limitação, lilla, o jogo divino. Ora, se Maya é o upadhi (substrato) de Iswara, então Iswara é a aparição pessoal de Brahman. Como Guénon considerava o Advaita a exposição Metafísica mais precisa, é de se entender a importância de sua distinção entre o Ser e o Não-Ser. Destarte, não se pode acusar Guénon de possuir uma teoria intrinsecamente absurda sem utilizar o mesmo rigor que Ramanuja utilizou ao tentar refutar o Advaita e lançar as bases para o seu Advaita qualificado, o Vishistadvaita. Até porque, mesmo o ramo heterodoxo do Advaita, o neoadvaita, consegue boas refutações às objeções de Ramanuja, portanto, não parece que Guénon adotou uma linha absurda ou heterodoxa do hinduísmo. A idéia de um princípio manifestado e outro imanifestado superior não é estranha ao hinduísmo.

O problema pode aparecer, de fato, ao tentar familiarizar esta doutrina com o Cristianismo; no entanto, este tema merece um estudo rigoroso e detalhado para si, pois enquanto até algumas passagens de Santo Agostinho parecem um obscuro encontro com o Advaita, e outras de São Dionísio, São Gregório Nazianzeno, Mestre Eckhart e outros místicos cristãos parecem estar de pleno acordo, outras idéias como a deificação e distinção entre essência e energia da Teologia Ortodoxa demonstram uma completa negação ao Advaita. Para finalizar, um trecho de “O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta”, de René Guénon, que ilustra muito bem o que foi tratado aqui.

Lembraremos que tudo o que concerne a este estado incondicionado de Atmâ é expresso sob uma forma negativa; isto é fácil de compreender, pois, na linguagem, toda afirmação direta é forçosamente uma afirmação particular e determinada, a afirmação de algo que exclui outra coisa, e que assim limita aquilo que podemos afirmar . Toda determinação é uma limitação, portanto uma negação; por conseguinte, é a negação de uma determinação que é uma verdadeira afirmação, e os termos de aparência negativa que encontramos aqui são, em seu sentido real, eminentemente afirmativos.

De resto, o termo “Infinito”, cuja forma é semelhante, exprime a negação de todo limite, de sorte que ele equivale à afirmação total e absoluta, que compreende ou abarca todas as afirmações particulares, mas que não é nenhuma delas com a exclusão das demais, precisamente porque ela implica a todas igualmente e “não-distintivamente”; e é assim que a Possibilidade Universal compreende absolutamente todas as possibilidades. Tudo o que pode exprimir-se em forma afirmativa está necessariamente encerrado no domínio do Ser, pois este é em si a primeira afirmação ou a primeira determinação, aquela da qual procedem todas as outras, assim como a unidade é o primeiro dos números e o número do qual todos derivam; mas, aqui, estamos na “não-dualidade”, e não mais na unidade, ou, em outros termos, estamos além do Ser, pelo fato mesmo de estarmos além de toda determinação, ainda que principial.

René Guénon, O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta, Cap.XV

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