segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Simbolismo do Xadrez

É fato conhecido que o jogo de xadrez se originou na Índia. Foi passado para o Ocidente medieval pelo intermédio dos persas e árabes, a quem nós devemos, por exemplo, a expressão “xeque-mate” (Schachmatt em alemão) que é derivado do Persa shâh = rei e o árabe mât: “o rei está morto.” Na época do Renascimento foram mudadas algumas das regras do jogo: à “rainha”(1) e aos dois “bispos”(2) foi concedida maior mobilidade, e a partir daí o jogo adquiriu um caráter mais abstrato e matemático; o modelo básico foi mantido, assim como a estratégia, sem que tenham se perdido as características essenciais de seu simbolismo.

Na posição original das peças de xadrez, o modelo estratégico antigo permanece óbvio; a pessoa pode reconhecer dois exércitos dispostos de acordo com a ordem de batalha que era habitual no Oriente antigo: as tropas leves, representadas pelos peões, formam a primeira linha; o corpo do exército consiste nas tropas pesadas, as carruagens de guerra (“torre”), o cavalo (“a cavalaria”), e os elefantes de guerra (os bispos); o “o rei” com sua “dama” ou “o conselheiro” é posicionado no centro das tropas.

A forma do tabuleiro de xadrez corresponde o “clássico” tipo de Vastu-mandala (da doutrina tradicional Hindu), o diagrama que também constitui o plano básico de um templo ou uma cidade. Tem sido considerado (3) que este diagrama simboliza a existência concebida como um “campo de ação” dos poderes divinos. Assim, o combate que acontece no jogo de xadrez representa, em seu significado mais universal, o combate do devas com o asûras, isto é, dos “deuses” com os “titãs”, ou dos “anjos” (4) com os “demônios”; todos os outros significados do jogo derivam deste, que é o fundamental.

A descrição mais antiga que possuímos do jogo de xadrez aparece na obra “As Pradarias Douradas”, do historiador árabe Al-Mas'ûdî, que viveu em Bagdá no século IX. Al-Mas'ûdî atribui a invenção - ou codificação - do jogo a um rei hindu “Balhit”, um descendente de “Barahman” Há uma confusão óbvia aqui entre a casta dos Brahmins, e uma dinastia; mas que o jogo de xadrez tem que uma origem brahmin é provado pelo eminente caráter sacerdotal do diagrama de 8 x 8 quadrados (ashtâpada). Mais adiante, o simbolismo bélico do jogo relaciona isto ao Kshatriyas, a casta de príncipes e nobres, como Al-Mas'ûdî indica quando ele escreve que os hindús consideraram o jogo de xadrez (shatranj, do chaturanqa sânscrito (5)) como uma “escola de governo e defesa”.

É dito que o Rei Balhit escreveu um livro sobre o jogo no qual “ele fez um tipo de alegoria dos corpos celestes, como os planetas e os doze signos do Zodíaco, consagrando cada peça a uma estrela...”. - Podemos lembrar que os hindus reconhecem oito planetas: o sol, a lua, os cinco planetas visíveis ao olho nu, e Rahu, a “estrela escura” dos eclipses (6); cada um destes “planetas” rege uma das oito direções de espaço”. “Os indianos”, continua Al-Mas'ûdî, “dão um significado misterioso ao redobrar, quer dizer, para a progressão geométrica, efetuada nos quadrados do tabuleiro de xadrez; eles estabelecem uma relação entre a primeira causa que domina todas as esferas e na qual tudo acha seu fim, e a soma dos quadrados do tabuleiro de xadrez....”. Aqui o autor está confundindo o simbolismo cíclico insinuado no ashtapada e a lenda famosa de acordo com as qual o inventor do jogo pediu ao monarca que enchesse os quadrados do tabuleiro de xadrez de grãos de milho, colocando um grão no primeiro quadrado, dois no segundo, quatro no terceiro, e assim por diante, até o sexagésimo-quarto quadrado, o que dá a soma de 18.446.744.073.709.551.616 grãos.

O simbolismo cíclico do tabuleiro de xadrez reside no fato que expressa o desdobramento de espaço de acordo com o quaternário e octonário das direções principais (4 x 4 x 4 = 8 x 8), e que sintetiza, de forma cristalina, os dois grandes ciclos complementares de sol e lua: o duodenário -12- do zodíaco e as 28 mansões lunares; além disso, o número 64, que é a soma dos quadrados no xadrez-tábua, é um sub-múltiplo do número cíclico fundamental 25920, que mede a precessão dos equinócios. Nós vimos que cada fase de um ciclo, “fixado” no esquema de 8 x 8 quadrados, é governado por um corpo celeste e ao mesmo tempo simboliza um aspecto divino, personificado por um deva (7). É assim que este mandala simboliza ao mesmo tempo o cosmo visível, o mundo do Espírito, e a Divindade em seus aspectos múltiplos.

Al-Mas'ûdî está então certo ao dizer que os hindus explicam, “por cálculos baseados no tabuleiro de xadrez, a marcha do tempo e os ciclos, as influências mais altas que são exercidas neste mundo, e os laços que os prendem à alma humana...”. (8)

O simbolismo cíclico do tabuleiro de xadrez era conhecido pelo Rei Alphonsus o Sábio, o trovador famoso de Castilha que em 1283 escreveu o “Libros del Acedrex”, uma obra que baseada em grande parte em fontes Orientais. Alphonsus o Sábio também descreve uma variante muito antiga do jogo de xadrez, o “jogo das quatro estações” que é jogado entre quatro parceiros, de forma que as peças, dispostas nos quatro cantos do tabuleiro de xadrez, são movimentadas por cada um em sentido circular, análogo ao movimento do sol. As 4 x 8 peças têm as cores verde, vermelho, preto e branco; elas correspondem às quatro estações: primavera, verão, outono e inverno; aos quatro elementos: ar, fogo, terra, e água; e aos quatro “humores” orgânicos. (9)

O movimento dos quatro campos simboliza transformação cíclica. Este jogo que estranhamente se assemelha a certos rito e danças “solares” dos índios norte-americanos, representa analogamente o princípio fundamental do tabuleiro de xadrez.

O tabuleiro de xadrez pode ser considerado como a extensão de um diagrama formado por quatro quadrados, alternativamente preto e branco, e constitui em si mesmo um mandala de Shiva, Deus em seu aspecto transformador: o ritmo quaternário, que é o deste mandala , é a “coagulação do espaço”, e expressa o princípio do tempo.

Os quatro quadrados, colocados ao redor de um centro não-manifestado, simbolizam as fases cardeais de todos os ciclos. A alternância dos quadrados pretos e brancos neste diagrama elementar do tabuleiro de xadrez (10) salienta sua significação cíclica (11) e o faz o equivalente retangular do símbolo extremo-oriental do yin-yang. É uma imagem do mundo em seu dualismo fundamental (12).

Se o mundo sensível em seu desenvolvimento integral resulta até certo ponto da multiplicação das qualidades inerentes no espaço e tempo, o Vastu-mandala, por sua parte, deriva da divisão de tempo através de espaço: podemos recordar a gênese do Vastu-mandala no interminável ciclo celestial, que é dividido pelos pontos cardeais, cristalizado então em uma forma retangular (13). O mandala é assim a reflexo invertido da síntese principial do espaço e tempo, e é nisto que sua significação ontológica reside.

De outro ponto de vista, o mundo é “tecido” das três qualidades fundamentais ou gunas (14) e o mandala representa esta tessitura de uma maneira esquemática, em conformidade com as direções cardeais de espaço. A analogia entre o Vistu-mandala e a tessitura se dá pela alternação de cores que recordam um tecido cuja trama e urdidura são alternadamente aparentes e escondidos.

Além disso, a alternação de preto e branco corresponde aos dois aspectos da mandala que é em princípio complementar mas, na prática, opostos: a mandala é, por um lado, Purusha-mandala, quer dizer, um símbolo do Espírito Universal Purusha já que é imutável e síntese transcendente do cosmo; por outro lado é um símbolo de existência (Vastu) considerado como o suporte passivo das manifestações divinas.

A qualidade geométrica do símbolo expressa o Espírito, enquanto sua extensão puramente quantitativa expressa existência. Do mesmo modo, sua imutabilidade ideal é “espírito” e sua limitação coagulada é “existência” ou materia; aqui não se trata de matéria prima, virgem e generosa, mas “materia secunda”, “escura” e caótica, que é a raiz do dualismo existencial. Em conexão com isto, podemos recordar o mito segundo o qual Vastu-mandala representa um asûra, personificação de existência bruta: os devas conquistaram este demônio e estabeleceram a sua “morada” no corpo estendido de sua vítima; assim, eles lhe conferem uma “forma”, mas é ele que os manifesta (15).

Este significado duplo que caracteriza o Vastu-Purusha-mandala, o qual, aliás, será encontrado em todo símbolo, é de certo modo atualizado pelo combate que o jogo de xadrez representa. Este combate, como dissemos, é essencialmente entre devas e o asûra, que disputam o tabuleiro de xadrez do mundo. É aqui que o simbolismo do preto e do branco, já presente nas casas do tabuleiro de xadrez, assume seu valor completo: o exército branco é Luz e o exército preto, escuridão.

Em um domínio relativo, representa a batalha que acontece no tabuleiro de xadrez representa qualquer um dos dois exércitos terrestres, cada qual lutando em nome de um princípio (16), ou a batalha, no homem, do espírito e da escuridão; estas são as duas formas do “guerra santa”; a “pequena guerra santa” e a “grande guerra santa”, de acordo com um dito do Profeta Muhammad. Veremos a relação do simbolismo iimplicado no jogo de xadrez com o tema do Bhagavadita, um livro que é destinado aos Kshatriyas.

Se transpusermos a significação das diferentes peças de xadrez ao domínio espiritual, o rei se torna o coração, ou espírito, e as outras peças as várias faculdades da alma. Além disso, os movimentos das peças correspondem a modos diferentes de perceber as possibilidades cósmicas representadas pelo tabuleiro de xadrez: há o movimento axial do “castelos” ou carruagens de guerra, o movimento diagonal dos bispos ou elefantes, que seguem uma única cor ( das casas) , e o movimento complexo dos cavalos. O movimento axial, com “cortes” pelas diferentes “cores”, é lógico e viril, enquanto o movimento diagonal corresponde a uma continuidade “existencial” - portanto, feminino. O salto dos cavalos corresponde à intuição.

O que mais fascina o homem de casta nobre e bélica é a relação entre a vontade e o destino. Ora, é precisamente isto que é claramente ilustrado pelo jogo de xadrez, já que seus movimentos permanecem sempre inteligíveis.
Alphonsus o Sábio, em seu livro sobre xadrez, relata como um rei da Índia desejou saber se o mundo obedece à inteligência ou à sorte. Dois homens sábios, seus conselheiros, deram respostas opostas, e para provarem suas respectivas teses, um deles levou como exemplo o jogo de xadrez no qual a inteligência prevalece sobre a sorte, enquanto o outro trouxe um jogo de dados, o símbolo de fatalidade (17). Al-Mas'ûdî escreve igualmente que o rei “Balhit”,considerado como o codificador o jogo de xadrez, deu preferência ao xadrez em relação ao nerd, um jogo de azar, porque no primeiro forma-se a inteligência e, no segundo, a ignorância.

Em cada fase do jogo, o jogador é livre para escolher entre várias possibilidades, mas cada movimento implicará uma série de conseqüências inevitáveis, de forma que a livre escolha a cada jogada estará crescentemente limitada; o fim do jogo é visto, não como o fruto do acaso, mas como o resultado de leis rigorosas.

É aqui que vemos não só a relação entre vontade e destino, mas também entre liberdade e conhecimento; exceto no caso de inadvertência por parte de um dos oponentes, o jogador só salvaguardará sua liberdade de ação quando as decisões dele corresponderem com a natureza do jogo, quer dizer, com as possibilidades que o jogo implica. Em outras palavras, liberdade de ação está aqui em solidariedade completa com previsão e conhecimento das possibilidades; ao contrário, o impulso cego, porém livre e espontâneo como pode aparecer à primeira vista, revela-se no resultado final como uma “não-liberdade”.

A “arte real” é governar o mundo – externo e interno - em conformidade com suas próprias leis. Esta arte pressupõe sabedoria que é o conhecimento de possibilidades; agora todas as possibilidades são contidas, - de uma maneira sintética, no Espírito universal e divino. A verdadeira sabedoria é uma identificação mais ou menos perfeita com o Espírito (Purusha), este último sendo simbolizado pela qualidade geométrica (18) do tabuleiro de xadrez, “selo” da unidade essencial das possibilidades cósmicas.

O Espírito é Verdade; pela Verdade, homem é livre; fora de verdade, ele é o escravo de destino. Isso é o ensinamento do jogo do xadrez; o Kshatriya que se dedica a este jogo não só encontra um passatempo ou meios de subliminar sua paixão bélica e necessidade por aventura, mas também, de acordo com sua capacidade intelectual, um apoio especulativo e um “caminho” que conduz da ação à contemplação.






Notas:

(1) No xadrez Oriental esta peça não é uma “rainha” mas um “o conselheiro” ou “ministro” para o rei (em árabe mudaffir ou wazîr, em Persa fersan ou fars). A designação “rainha” no jogo Ocidental se deve indubitavelmente à uma confusão do termo Persa fersan que se tornou alferqa em castelhano e em francês antigo fierce ou fierqe , isto é, “a virgem.” Seja que como for, a atribuição de tal um papel dominante para o rei em relação à “a dama” corresponde bem à atitude de cavalheirismo. Também é significativo que o jogo de xadrez tenha sido passado ao Ocidente através da corrente Arabo-persa que também trouxe a arte heráldica e as regras principais de cavalheirismo.

(2) Esta peça era originalmente um elefante (árabe al-fil) que conduzia uma torre fortalecida. A representação esquemática da cabeça de um elefante em alguns manuscritos medievais também poderia ser vista como um “o boné do bobo” ou a mitra de um bispo: em francês a peça é chamada fou, “o bobo”; em alemão é chamado Laufer “o corredor”.

(3) Veja, do autor, “A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente” (Perennial Books, Londres, 1967), Capítulo l, “A Gênese do Templo Hindu”.

(4) Os devas da mitologia hindu são análogos aos anjos das tradições monoteístas; é sabido que cada anjo corresponde a uma função divina.

(5) A palavra chaturanqa significa o exército hindu tradicional, composto de quatro anqas = elefantes, cavalos, carruagens e soldados.

(6) A cosmologia hindu sempre leva em conta o princípio de inversão e exceção, que resultam do caráter “ambíguo” da manifestação: a natureza das estrelas é a luminosidade, mas como as estrelas por si não iluminam, também deve haver um lado escuro.

(7) Certos textos budistas descrevem o universo como uma tabuleiro de 8 x 8 quadrados, fixado através de cordas douradas; estes quadrados correspondem aos 64 kalpas do Budismo (veja “Saddharma Pundarika”, Burnouf, “Lotus de la bonne Loi”, pág., 148). No Ramayana, a cidade inconquistável dos deuses, Ayodhyâ, é descrita como um quadrado com oito compartimentos em cada lado. Lembramos também na tradição chinesa, os 64 signos que derivam dos 8 trigramas comentados no “I-Kinq”. Estes 64 sinais geralmente são organizados em correspondência às oito regiões de espaço. Assim, encontramos novamente a idéia de uma divisão quaternária e octonária do espaço, que sintetiza todos os aspectos do universo.

(8) Em 1254 São Louis proibiu xadrez entre seus assuntos. O santo teve em mente as paixões que o jogo poderia desencadear, especialmente como freqüentemente ocorre com o jogo de dados.

(9) Esta variante de xadrez é descrita no Bhawisya Purana. Alphonsus o Sábio também fala de um “grande jogo de xadrez” que é jogado em um tabuleiro de 12 x 12 quadrados (casas) e no qual as peças representam animais mitológicos; ele o atribui aos sábios da Índia.

(10) Dado que o tabuleiro de xadrez chinês, que igualmente teve sua origem na Índia, não possua a alternação de duas cores, presume-se que este elemento tenha vindo da Pérsia; permanece fiel, no entanto, ao simbolismo original do tabuleiro de xadrez.

(11) Isto também constitui um símbolo de analogia inversa; primavera e outono, manhã e noite, são inversamente análogos. De uma maneira geral, a alternação do preto e branco corresponde ao ritmo do dia e noite, de vida e morte, de manifestação e de reabsorção no não-manifestado.

(12) Por esta razão o tipo de Vâstu-mandala que tem um número desigual de quadrados não pode servir como um tabuleiro de xadrez: o “campo de batalha” que ele representa não pode ter um centro manifestado, pois simbolicamente teria que estar para além das oposições.

(13) Veja, do autor, “A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente”, Capítulo 2, “Os fundamentos da Arte Cristã” (Perennial Books, Londres, 1978).

(14) Veja René Guénon, O Simbolismo da Cruz (Luzac, Londres, 1958).

(15) O mandala de 8 X 8 quadrados também é chamado Mandukat, “a rã”, por alusão à “Grande Rã” (maha-manduka) que suiporta o universo inteiro, e que é o símbolo dae matéria indiferenciada e obscura.

(16) Em uma guerra santa é possível que cada um dos combatentes possa se considerar legitimamente como o protagonista da Luz que luta contra a escuridão. Esta é novamente uma conseqüência do significado duplo de todo símbolo: o que para um é a expressão do Espírito, pode ser a imagem da escuridão nos olhos do outro.

(17) O mandala do tabuleiro de xadrez, por um lado, e dados, no outro, representam dois símbolos diferentes e complementares do cosmo.

(18) Recordemos que o Espírito ou a Palavra é a “forma das formas”, quer dizer, o princípio formal do universo.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Significado das Cruzadas


por Julius Evola

Cap. III de Metafísica da Guerra


Trataremos outra vez das formas da tradição heróica que permitem à guerra assumir o valor de um caminho de realização espiritual, no sentido mais rigoroso do termo, e também de uma justificação e de finalidade transcendental. Já falamos das concepções que, sob este ponto de vista, foram as do antigo mundo romano. Depois olhamos as tradições nórdicas e o caráter imortal de toda a morte realmente heróica no campo de batalha. Referimo-nos necessariamente a estas concepções para chegar ao mundo medieval, à Idade Média como civilização resultante da síntese de três elementos: primeiro romano, depois o nórdico e finalmente o cristão.

Examinaremos agora o ideal de sacralidade da guerra, tal como foi concebido e cultivado ao longo da Idade Média. Evidentemente devemos nos referir às Cruzadas, presos ao seu significado mais profundo, sem as reduzi-las aos determinismos econômicos e étnicos, como os historiadores materialistas, e muito menos reduzi-las a um fenômeno de superstição e de exaltação religiosa, como desejam os espíritos “evoluídos”, enfim, nem mesmo a um fenômeno simplesmente cristão. Sobre este último ponto não devemos perder de vista a relação estreita entre meio e fim. Diz-se que nas Cruzadas a fé cristã se serviu do espírito heróico da cavalaria ocidental. É precisamente o contrário que é verdadeiro. A fé cristã e seus fins relativos e contingentes de luta religiosa contra o “infiel”, da “Libertação do Templo” e da “Terra Santa”, não foram mais que os meios que permitiram a manifestação do espírito heróico, de se afirmar e de se realizar numa espécie de ascese, distinto da contemplação, mas não menos rica em frutos espirituais. A maioria dos cavaleiros que entregaram suas forças deram o sangue pela “guerra santa” não tinham mais que uma idéia e um vago conhecimento teológico sobre a doutrina pela qual combatiam.

Entretanto, o contexto das Cruzadas era rico em elementos susceptíveis para fornecer um significado simbólico, espiritual e superior. Através das vias do subconsciente, os mitos transcendentais refloresciam na alma da cavalaria ocidental: a conquista da “Terra Santa”, situada “além dos mares”, apresenta infinitamente mais referências reais que poderiam supor os historiadores com a antiga saga segundo a qual “no longínquo Oriente onde nasce o sol, se encontra a cidade sagrada onde a morte não reina, mas onde os valorosos heróis que sabem esperá-la gozam de uma celestial serenidade e de uma vida eterna”. Por outro lado, a luta contra o Islam revestiu, por sua natureza, desde o princípio, o significado de uma luta ascética. “Não se trata de combater pelos reinos da terra – escreveu Kluger, célebre historiador das Cruzadas – mas pelo reino dos céus; as Cruzadas não eram do domínio dos homens, mas sim de Deus – por isso não as podemos considerar semelhantes a outros acontecimentos humanos”. A guerra santa devia, segundo a expressão de um antigo cronista, comparar-se “com o batismo semelhante ao fogo do purgatório antes da morte”. Os papas e os pregadores comparavam simbolicamente aqueles que morriam nas cruzadas com o “ouro três vezes ensaiado e sete vezes purificado pelo fogo” e que podia conduzir ao Deus Supremo. “Não esqueçais jamais este oráculo – escreveu São Bernardo – quer vivamos, quer morramos, ao Senhor pertencemos. Que Glória para vós sair da batalha cobertos de louros. Mas que alegria maior para vós, de ganhar sobre o campo de batalha uma coroa imortal … oh, condição afortunada! Poder enfrentar a morte sem temor, mesmo desejá-la com impaciência, e recebê-la com de coração firme”. A glória absoluta estava prometida ao cruzado – glória asolue - em provençal – pois, à parte da imagem religiosa lhe oferecia a conquista da supravida, do estado sobrenatural da existência. Assim, Jerusalém, fim cobiçado da conquista, apresentava-se sob o duplo aspecto, duma cidade terrestre e duma cidade simbólica, a Cruzada tomava um valor interior, independente de todos os seus aparatos, seus suportes e suas motivações aparentes.

Afinal, foram as ordens da Cavalaria quem ofereceram o maior tributo às Cruzadas, com a Ordem do Templo e a dos Cavaleiros de São João de Jerusalém, compostas por homens que, como o monge ou asceta cristão “aprenderam a desprezar a vaidade desta vida; em tais ordens encontravam-se guerreiros fatigados pelo mundo, que tudo tinham visto e tudo tinham provado”, prontos a uma ação total e que não sustentavam mais nenhum interesse pela vida material e temporal nem pela política ordinária, no sentido mais estrito. Urbano II dirigia-se à cavalaria como à comunidade supranacional daqueles “dispostos a partir até onde rebentasse uma guerra, a fim de levar o terror das suas armas para defender a honra e a justiça” … com mais razão deviam escutar e atender ao apelo da “Guerra Santa”, guerra que, segundo um dos escritores da época, não tinha por recompensa um feudo terrestre, revogável e contingente, mas um “feudo celestial”.

Mas o desenrolar das Cruzadas, num contexto mais amplo e no plano ideológico geral, provocou uma purificação e uma interiorização do espírito de iniciativa. Segundo a convicção inicial de que a guerra pela “verdadeira” fé não podia ter mais que uma saída vitoriosa, os primeiros fracassos militares sofridos pelos exércitos cruzados foram um foco de surpresas e assombro, mas à posteriori serviram, contudo, para trazer à luz o aspecto mais elevado da “guerra santa”. O resultado desastroso de uma Cruzada era comparado pelos clérigos de Roma ao destino da virtude desgraçada que não é julgada nem recompensada, a não ser em função da outra vida. E isto anunciava o reconhecimento de algo superior tanto na vitória como na derrota, a colocação no primeiro plano do aspecto próprio à ação heróica cumprida independentemente dos frutos visíveis e materiais, quase como uma oferenda transformando o holocausto viril de toda a parte humana em “glória absoluta” e imortal.

É evidente que desta maneira se devia acabar por atingir um plano, por assim dizer, supratradicional, tomando a palavra “tradição” num sentido mais restrito, mais histórico e religioso. A fé religiosa em particular, os fins imediatos, o espírito antagonista, convertiam-se então em elementos tão contingentes como a natureza variável de um combustível destinado somente a produzir e a alimentar uma chama. O ponto central continuava a ser o valor santo da guerra. Mas se prefigurava igualmente a possibilidade de reconhecer, que aqueles que eram adversários no momento, pareciam atribuir a este combate o mesmo significado tradicional.

Este é um dos elementos graças ao qual as Cruzadas serviram, apesar de tudo, para facilitar o intercâmbio cultural entre o Ocidente gibelino e o Oriente árabe (ponto de reencontro, por sua vez, de elementos tradicionais ainda mais antigos), mas o alcance disso vai muito além do que a maioria dos historiadores demonstraram até ao presente. Da mesma forma, as ordens de cavalaria das cruzadas, se encontraram diante das ordens de cavalaria árabes, que lhes eram quase análogas no plano da ética, por vezes mesmo dos símbolos, e por isso a “guerra santa” que havia motivado as duas civilizações, uma contra a outra em nome das suas religiões respectivas, permitiu igualmente o seu reencontro e que, partindo de duas crenças diferentes, cada uma acabou por dar à guerra um valor de espiritualidade análogo e independente. É afinal aquilo que se sobressai, quando estudarmos como, forte na sua fé, o antigo cavaleiro árabe se eleva ao mesmo nível supratradicional que o cavaleiro cruzado pelo seu ascetismo heróico.

Agora, este é outro ponto que queremos aflorar. Aqueles que julgam as Cruzadas superficialmente, as remetem a um dos episódios mais extravagantes da “obscura” Idade Média, não supõem que o que definem como “fanatismo religioso” é a prova tangível da presença e da eficácia de uma sensibilidade e de um tipo de decisão cuja ausência caracterizava a barbárie autêntica. Já que o homem das Cruzadas sabia todavia afirmar-se, combater e morrer por um ideal, que era essencialmente suprapolítico e suprahumano. Associava-se também a uma união baseada, não sobre o particular, mas sobre o universal. E isto significa um valor, um ponto de referência inabalável.


Naturalmente não se deve confundir nem pensar que a motivação transcendente possa ser uma desculpa para tornar o guerreiro indiferente, para torná-lo negligente aos deveres inerentes à sua fidelidade a uma raça e a uma pátria. Não é bem assim. Pelo contrário, trata-se essencialmente de significados profundamente diferentes, segundo os quais ações e sacrifícios podem ser vencidos, embora observados do exterior, possam parecer absolutamente os mesmos. Existe uma diferença radical entre quem faz simplesmente a guerra, e quem pelo contrário, na guerra faz também a “guerra santa” e vive uma experiência superior, desejada e desejável para o espírito.

É preciso acrescentar que, se esta diferença é, antes de tudo interior e sob o impulso de tudo o que interiormente tem uma força, traduz-se também no exterior, provocando efeitos sobre outros planos e particularmente nos seguintes termos: antes de tudo, termos uma “irredutibilidade” do impulso heróico: quem vive espiritualmente o heroísmo está carregado de uma tensão metafísica, animado por um estimulo cujo objetivo é “infinito”, e superará sempre aquilo que anima quem combate por necessidade, por oficio ou sob impulsos naturais ou sugestões.

Em segundo lugar, quem combate numa “guerra santa” situa-se espontaneamente além de todo o particularismo, vive num clima espiritual que, num determinado momento, pode muito bem dar origem a uma unidade supranacional dentro da ação. É justamente isso que ocorreu nas Cruzadas, quando príncipes e chefes de todos os países se uniram para a expedição heróica e santa, para além dos seus interesses particulares e utilitários e das divisões políticas, realizando pela primeira vez uma grande unidade européia conforme a sua civilização comum e ao próprio princípio do Sacro Império Romano-Germânico.

Se soubermos abandonar o “pretexto”, se soubermos isolar o essencial do contingente, encontraremos um elemento precioso que não se limita a um período histórico determinado. Conseguir conduzir a ação heróica sobre um plano “ascético”, justificá-la também em função desse plano, significa desimpedir o caminho para uma nova e possível unidade de civilização. Isto também significa separar todo o antagonismo condicionado pela matéria, preparar o espaço das grandes distâncias e as amplas frentes, para dimensionar, pouco a pouco, os objetivos externos da ação em seu novo significado espiritual: tal como se verifica quando não é só por um país ou por ambições temporais que se combate, mas em nome de um princípio superior de civilização, de uma tentativa que por ser metafísica nos faz ir adiante, além de todo limite, além de todos os perigos e além de qualquer destruição.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A Sacralidade da Guerra


por Julius Evola .

Cap. II de Metafísica da Guerra



Acabamos de ver como o fenômeno do heroísmo guerreiro pode revestir várias formas e obedecer a diferentes significados, uma vez já definidos os valores da autêntica espiritualidade que o diferenciam profundamente. Por enquanto, começaremos com o exame de certos conceitos relativos às antigas tradições romanas. Geralmente, não há nada além de um conceito laico do valor da romanidade antiga. O romano não foi mais que um soldado no sentido estrito da palavra, e graças às suas virtudes militares, unidas a uma feliz concorrência de circunstâncias, pôde conquistar o mundo. Opinião equivocada, não importa de quem seja.

Antes de tudo, o romano alimentava a intima convicção de que Roma, seu “Imperium” e sua “Aeternitas”, eram derivados de forças divinas. Para considerar esta convicção romana, sob um aspecto exclusivamente “positivo”, é preciso substituir esta crença por um mistério: mistério de como um punhado de homens, sem nenhuma necessidade de “terra” ou “pátria”, sem estarem possuídos por nenhum destes mitos ou paixões, que tanto atraem os modernos e com as quais justificam a guerra e promovem ações heróicas, mas sob um estranho e irresistível impulso, este mistério arrastava os romanos, cada vez mais longe, de país em país, reduzindo tudo a uma “ascese de poder”. Segundo testemunhos de todos os clássicos, os primeiros romanos eram muito religiosos – “nostri maiores religiosissimi mortales” – relembra Salústio e repetem Cícero e Aulo Gélio, mas esta religiosidade não se limitava a uma esfera abstrata e isolada, espalhava-se na prática, no mundo da ação e por conseqüência, abarcava também a experiência guerreira.

Um colégio sagrado formado pelos “Fetiales” presidia em Roma a um sistema bem determinado de ritos, que eram o lado místico de qualquer guerra, desde a sua declaração até a sua conclusão. No geral, é certo que um dos princípios da arte militar romana era evitar travar batalhas antes que os signos místicos tivessem, por assim dizer, indicado o “momento”.

Com as deformações e preconceitos da educação moderna não se quererá ver nisto mais que uma super estrutura extrínseca feita à base de superstições. Quanto aos mais benévolos, não será nada mais que um fatalismo extravagante. Mas não era nem uma coisa nem outra. A essência da arte de adivinhação praticada pelo patriciado romano, assim como outras disciplinas análogas de caráter mais ou menos idêntico no ciclo das grandes civilizações indo-européias, não era descobrir o “destino” na base de uma supersticiosa passividade. Pelo contrario, era descobrir antecipadamente os pontos de conjugação com influências invisíveis, para concentrar as forças dos homens e torná-las mais poderosas, de multiplicá-las e as induzir a atuar sobre um plano superior, com o fim de varrer - quando a concordância era perfeita - todos os obstáculos e resistências no plano material e espiritual. É difícil pois, a partir disso, duvidar do valor romano, a ascese romana de potência não era só na sua contrapartida espiritual e sacra, instrumento da grandeza militar e temporal, mas também num contacto e uma união com as forças superiores.

Se fosse oportuno, poderíamos citar farta documentação para fundamentar esta tese. No entanto, nos limitaremos a recordar que a cerimônia do triunfo tinha em Roma um caráter muito mais religioso que laico-militar, e numerosos elementos permitem deduzir que o Romano atribuía a vitoria dos seus “duces” mais a uma força transcendente, que se manifestava real e eficazmente através deles, no seu heroísmo e inclusive por meio do seu sacrifício (como no rito da “devotio” no qual os chefes se imolavam), que a suas qualidades simplesmente humanas. Desta forma, o vencedor, revestindo as insígnias do Deus capitolino supremo, se identificava com ele, era sua imagem, e depositava nas mãos deste Deus, os louros da sua vitória, em homenagem ao verdadeiro vencedor.

No fundo, uma das origens da apoteose imperial, era o sentimento que debaixo da aparência do Imperador se escondia um “numen” imortal, incontestavelmente derivado da experiência guerreira: O “Imperatore”, originariamente era o chefe militar aclamado sobre o campo de batalha, no momento da vitória, mas nesse instante aparecia também como transfigurado por uma força vinda do alto, terrível e maravilhosa que dava a impressão do “numen”. Esta concepção, por outro lado, não é exclusivamente romana, encontra-se em toda a antiguidade clássico-mediterrânea e não se limitava aos generais vencedores, estendia-se aos campeões olímpicos e aos sobreviventes dos combates sangrentos do circo. Na Grécia, o mito dos Heróis confunde-se com as doutrinas místicas, como o orfismo, e identifica o guerreiro vencedor como o iniciado, vencedor da morte. Testemunhos precisos sobre um heroísmo e um valor que emanavam, mais ou menos conscientemente, das vias espirituais, abençoados não só pelas conquistas materiais e gloriosas, mas também pelo seu aspecto de evocação ritual e de conquista espiritual.

Passemos a outros testemunhos desta tradição que, pela sua natureza é metafísica e, como conseqüência, o elemento “raça” não pode ter mais que uma parte secundária e contingente. Portanto, mais adiante, trataremos da “Guerra Santa” praticada no mundo guerreiro do Sacro Império Romano-Germânico. Esta civilização apresentava-se como um ponto de confluência criadora de vários elementos: um romano, um cristão e um nórdico.

Com relação ao primeiro elemento, já fizemos alusão a ele no contexto que nos interessa. O elemento cristão se manifestara sob as características de um heroísmo cavalheiresco supranacional com as cruzadas. Nos sobra o elemento nórdico. Para que ninguém se espante, assinalamos que se trata de um caráter essencialmente supra-racial, incapaz de valorizar ou denegrir um povo em relação a outro. Para fazer alusão a um plano no qual nos auto excluímos, de momento nos limitaremos a dizer que nas evocações nórdicas, mais ou menos frenéticas celebradas hoje em dia “ad usum delphini” na Alemanha nazista, por surpreendente que possa parecer, se assiste a uma deformação e a uma depreciação das autênticas tradições nórdicas tal como foram originariamente e tal como se perpetuaram nos Príncipes que tinham por grande honra o poder de se denominarem “romanos” ainda que fosse de raça teutônica. Pelo contrário, para numerosos escritores “racistas” de hoje, “nórdico” não significa nada além de “anti-romano” e “romano” tem mais ou menos um significado equivalente a “judeu”.

Portanto, é interessante reproduzir uma significativa forma guerreira da tradição celta: “combatei por vossa terra e aceitai a morte se for preciso: pois a morte é uma vitória e uma liberação da alma”. Este conceito corresponde, em nossas tradições clássicas, à expressão “mors triumphalis”. Quanto à tradição realmente nórdica, ninguém ignora a parte do Walhalla, reino imortal reservado, não apenas aos “homens livres” de fonte divina, mas também aos Heróis mortos no campo de honra (Walhalla significa literalmente “o reino dos eleitos”). O Senhor deste lugar simbólico é Odin-Wotan, conforme descrito na Ynglingasaga, como aquele que, pelo seu sacrifício simbólico na “árvore do mundo”, indicou aos Heróis um modo de esperar o descanso divino, um lugar em que se vive eternamente sobre um cume luminoso e resplandecente, além das nuvens. Segundo esta tradição, nenhum sacrifício, nenhum culto, é tão grato a Deus, nem mais rico em recompensa no outro mundo, como aquele realizado pelo guerreiro que combate e morre na luta. Além do mais: o exército dos heróis mortos em combate deve reforçar a falange dos “heróis celestes” que lutam contra o ragna-rökkr, ou seja, contra o destino do “obscurecimento do divino” que, segundo os ensinamentos, como no caso dos clássicos gregos, (Hesíodo) está sobre o mundo desde as eras mais remotas.

Encontramos este tema sobre formas diferentes nas lendas medievais que concernem à “última batalha” que livrará o Imperador imortal. Neste ponto, para perceber o elemento universal, temos que trazer à luz a concordância de antigos conceitos nórdicos (que, diga-se de passagem, Wagner desfigurou com o seu romantismo empolgado, confuso e teutônico) com as antigas concepções iranianas e persas. Alguns se surpreenderão ao saber que as famosas Walkirias não são quem escolhe as almas dos guerreiros destinados ao Walhalla, mas sim a personificação da parte transcendente destes guerreiros, que tem como equivalentes exatas as fravashi, que na tradição persa são representadas como mulheres de luz e virgens arrebatadas das batalhas. Personificam mais ou menos as forças sobrenaturais em que as forças humanas dos guerreiros ”fiéis ao Deus da Luz” podem transfigurar e produzir um efeito terrível e turbulento nas ações sangrentas. A tradição iraniana continha igualmente a concepção simbólica de uma figura divina - Mitra, concebido como o “guerreiro sem sono” - que à frente das fravashi de seus fiéis, combate contra os emissários do deus das trevas, até a aparição do Saoshyant, senhor de um reino futuro, de “paz triunfal”.

Estes elementos da antiga tradição indo-européia repetem sempre os temas da sacralidade da guerra e do herói que na verdade não morre, mas que passa a ser soldado de um exército místico numa luta cósmica, interferindo visivelmente com os elementos do cristianismo: pelo menos do cristianismo que pode assumir o lema ”Vita est militia super terram” e reconhecer que não é apenas com a humildade, caridade, esperança e tudo mais que se alcança o “Reino dos Céus”, mas que também é possível alcançá-lo com certa violência – a afirmação heróica. É precisamente desta convergência de temas que nasceu a concepção espiritual da “Grande Guerra” própria das Cruzadas da Idade Média e que analisaremos debruçados especialmente sobre o aspecto interior individual destes ensinamentos, que sempre são atuais.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Importância da Contracultura - Cinema

"A criação de um Novo Estado e de uma Nova Civilização será sempre efêmera a menos que seu substrato seja um novo homem" - Julius Evola

À aristocracia do Espírito:

A contracultura, movimento que muitos consideram surgido nos anos 60, é na verdade um fenômeno presente em todas as eras de decadência dos verdadeiros valores tradicionais. Quando os valores e a Tradição perdem o significado espiritual, tornando-se então apenas uma "moral" para conservar a vida em sociedade, transformando aristocratas, aqueles om impulso à transcendência, em simples membros da sociedade, temos então uma consequência natural, que se desdobrará em apenas dois caminhos: ou este aristocrata mantém sua posição, em pé entre as ruínas, ou então passa à marginalidade. É como a mesma degeneração que transforma o ascetismo guerreiro num ascetismo pietista, meloso. Assim também é a sociedade: os valores que antes eram transformadores da natureza humana são enfraquecidos em busca de normas morais e regras de conduta.

Lembros que marginalidade aqui não pode ser entendida em um sentido amplo. Não falamos do bandidinho barato que assalta para satisfazer seus instintos, da mesma forma que o medíocre homem comum trabalhar para buscar seu sustento. Falamos daqueles que buscam uma vida à margem da sociedade, que já não merece mais a Tradição e a verdadeira normalidade, e merece o choque, o grotesco, aquilo que traga desespero, revolta, repulsa.

Portanto, ó supinos confrades, esta série demonstrará os diversos "espíritos de porco" (com muito orgulho!) que buscaram assustar, apavorar, chocar e destruir a decadência da época. Se apenas através da destruição faremos o novo homem e um novo mundo, urge portanto uma ação cultural capaz de aniquilar toda esta ordem, e então, após o caos, será possível erguer uma nova ordem, uma nova civilização, livre de todo sentimentalismo, moralismo e fraqueza que marca este degenerado fim de ciclo.

Easy Rider






Começamos com um filme que é importante não só pelos seus diversos elementos de contracultura, mas também por ser o melhor exemplo daqueles aristocratas do espírito que partiram para a marginalidade. Wyatt e Billy são o grande exemplo desta figura única: a que não respeita padrão algum de comportamento, não respeita tabu algum, nem mesmo a morte, sem alcançar adaptação em lugar algum.

Cannibal Holocaust




Uma película brutal, grotesca, repugnante. Já que não somos tão doentes para nos interessar pelas fortes cenas de violência, tortura, canibalismo, porquices em geral e outros temas muito familiares, destacamos a ótima demonstração de como os "civilizados" podem ser bem mais cruéis que nativos canibais. Este é um filme que pode tornar compreensível porque os canibais assaram o Frei Sardinha e outros colonizadores.

Meet the Feebles





Obra prima de Peter Jackson, esta versão conhecida como "the Muppets on acid", vai além de um filme com temática infantil com piadas para adultos. Não há um só valor que este filme não ridiculariza, os diálogos imbecis e repletos de malícia transformam este filme numa interessantísima exibição capaz de traumatizar qualquer criança (e muito adulto) pelo resto da vida. Detalhes para feridas purulentas, escatologia, perversões, violência, uso de drogas e outras cousas capaz de deixar Bin Laden com inveja na questão "afrontar a civilização judaica-cristã".

The Last House on the Left (1972)




Violência, vingança, sadismo, escatologia. Tudo isso cometido por verdadeiros psicopatas e, mais tarde, pelos pais da garota morta pelos bandidos, numa sequência de vingança violenta que fez muita gente se levantar das salas de cinema bem antes do final.

This is America

Não encontrei nenhum trailler ou trecho no youtube. Mas se você deseja ver como a América de verdade não é a mesma que existe na cabeça de necons americanos ou de brasileiros ignorantes ou de interesses obscuros, assista este filme.

El Topo


Ótimo faroeste psicodélico, violento, delirante e repleto de simbolismo. Era um dos filmes favoritos dos que buscavam viagens de ácido nos cinemas de NY. Um soco no estômago naqueles não muito acostumados com o cinema marginal. Creio que é capaz de, em certos casos, causar mais indignação que Cannibal Holocaust.

Luther the Geek







Só entra nessa lista pelo roteiro totalmente imbecil, pelas cenas totalmente imbecis e pela péssima qualidade dos "defeitos especiais" nas cenas de violência. Para dar um gostinho: garoto vê um bando arrancar pescoços de galinhas para beber sangue e 30 anos depois, já psicopata e com delírios galináceos, busca a vingança das galinhas tomando sangue de caipiras.

The Wall






Acho que é a única "obra prima" dessa lista. Loucura, alucinação, críticas à educação e criação moderna, o principal personagem é o símbolo do aristocrata do espírito enlouquecido pelo mundo moderno. É quase um Carlo Michelstaedter superstar.


terça-feira, 21 de julho de 2009

Sobre as formas do heroísmo guerreiro


Por Julius Evola

Cap. I de Metafísica da Guerra


O princípio geral para o qual seria possível apelar para justificar a guerra sobre o plano humano é o “heroísmo”. A guerra, segundo este princípio, oferece ao homem a ocasião de acordar o herói adormecido em si. Ela rompe a rotina da vida cômoda e através das mais duras provas, favorece um conhecimento transcendente da vida em função da morte. O instante no qual o individuo deve comportar-se como um herói, seja ele o último da sua vida terrestre, pesa infinitamente mais na balança que toda a sua existência vivida monotonamente, na agitação inquieta das cidades. Isto é o que compensa, em termos espirituais, os aspectos negativos e destrutivos da guerra, aspectos que o materialismo pacifista coloca unilateral e tendenciosamente em destaque. A guerra, ao estabelecer e realizar a relatividade da vida humana, estabelece e realiza também o direito de algo “além da vida” – pois sempre tem sempre um valor anti-materialista e espiritual.
Estas considerações têm um peso indiscutível e reduzem todas as demagogias do humanitarismo, os lamentos dos sentimentalistas e os protestos dos paladinos dos “imortais princípios” e da Internacional dos “heróis da pluma”. Contudo, é preciso reconhecer que para definir corretamente as condições pelas quais a guerra se apresenta realmente como fenômeno espiritual, deve-se proceder a um exame posterior, para esboçar uma espécie de “fenomenologia da experiência guerreira” e distinguir as diferentes formas e hierarquizá-las, para dar toda a importância ao ponto absoluto que servirá de referência à experiência heróica.

Para isso, é preciso recorrer a uma doutrina que não tenha uma estrutura de construção filosófica particular e pessoal, mas que, a sua maneira, tenha uma referência de fato positiva e objetiva. Trata-se da doutrina quaternária de divisão histórica e hierárquica, como também da história atual como uma decadência retroativa de um a outro desses graus hierárquicos. A divisão quaternária, em todas as civilizações tradicionais - sem dúvida alguma - deu origem a quatro castas diferentes: servos, burgueses, aristocracia guerreira e líderes da autoridade espiritual. Neste ponto, não devemos entender por casta – como faz a maioria – uma divisão artificial e arbitrária, mas sim um “laço” que reúne uma mesma natureza, um tipo de interesse e vocação idêntica, uma qualificação original idêntica. Normalmente, uma verdade e uma função determinada definem cada casta e não o contrário. Não se trata de privilégios e de formas de vida fundadas num monopólio e baseadas numa constituição social mantida, mais ou menos, artificialmente. O verdadeiro princípio que fundamenta estas instituições, segundo formas históricas mais ou menos perfeitas, é que não existe um modo único e genérico de viver a sua própria vida, a não ser o modo espiritual, quer dizer, como guerreiro, burguês, servo e, quando as funções e repartições sociais correspondem verdadeiramente a esta articulação, segundo a expressão clássica, estamos perante uma organização ”proveniente da verdade e da justiça”.

Esta organização converte-se em hierárquica quando implica uma dependência natural – e com a dependência a participação – de modos inferiores de vida, àqueles que são superiores, considerando como superior toda a personalização de um ponto de vista puramente espiritual. Somente neste caso há relações claras e normais de participação e subordinação, conforme o ilustra a analogia oferecida pelo corpo humano: ali onde não há condições sãs e normais, quando o elemento físico (servos) ou a vida vegetativa (burguês), ou a vontade impulsiva e não controlada (guerreiros), assumem a direção ou a decisão na vida do homem,surge o caos; mas quando o espírito constitui o ponto central e ultimo de referência para as faculdades restantes, às quais não lhes é negada uma autonomia parcial, uma vida própria e um direito auferido dentro do conjunto da unidade, aí está a ordem.

Mas não devemos falar genericamente de hierarquia, pois aqui tratamos da “verdadeira” hierarquia, na qual quem está no alto e dirige é verdadeiramente superior, é preciso fazer referência aos sistemas de civilização baseados numa elite espiritual e onde os modos de viver do servo, do burguês e do guerreiro buscam inspiração neste principio para justificar as atividades em manifestadas materialmente. Pelo contrário, estamos num estado anormal, quando o centro se deslocou e o ponto de referência não é o princípio espiritual mas sim o da classe servil, burguesa ou simplesmente guerreira. Em cada um dos casos, também há hierarquia e participação, mas não é algo natural. Ela é deformada, subversiva e acabar por ultrapassar todos os limites, transformando-se num sistema onde a visão da vida, própria de um servo, orienta e sustenta todos os elementos do conjunto social.

No plano político, este processo de degeneração é particularmente perceptível na história do Ocidente atual. Os Estados sacro-aristocráticos foram substituídos por Estados monárquicos-guerreiros, amplamente secularizados e estes, por sua vez, foram substituídos e ultrapassados por Estados fundamentados em oligarquias capitalistas (castas dos burgueses e mercadores) e finalmente por tendências socialistas, coletivistas e proletárias, que atingiram seu apogeu no bolchevismo russo (casta dos servos).

Este processo é paralelo à troca de um tipo de civilização por outra, de um significado fundamental da existência a outro, apesar de que, em cada fase particular destes conceitos, cada princípio e cada instituição receba um sentido diferente, conforme a parte predominante.

Isto é igualmente válido para a “guerra”. E é assim que vamos poder abordar positivamente a tarefa que nos propusemos no início deste ensaio: especificar os diversos significados que a morte e o combate heróico podem assumir. Conforme manifestada sob o signo de uma ou outra casta, a guerra adquire um aspecto diferente. Ou seja, dentro do ciclo da primeira casta, a guerra é justificável por motivos espirituais, é considerada uma via de realização sobrenatural e de imortalidade para o herói (tema da Guerra Santa). Nas aristocracias guerreiras, luta-se pela honra e por um princípio de lealdade, que se associa ao prazer da guerra pela guerra. Com a passagem do poder para as mãos da burguesia dá-se uma profunda transformação, o conceito de nação materializa-se e se democratiza; cria-se uma concepção anti-aristocrática e natural da pátria e o guerreiro dá lugar ao soldado e ao “cidadão”; que luta simplesmente para defender ou conquistar uma terra; com os guerreiros, quase sempre, fraudulentamente guiados por razões ou primazias de ordem econômica ou industrial. Por fim, onde o ultimo estado pode ser alcançado abertamente, é numa organização nas mãos de servos, expressada perfeitamente por Lênin: “A guerra entre nações é um jogo pueril, uma subserviência burguesa que não nos pertence. A verdadeira guerra, a nossa guerra, é a revolução mundial para destruição da burguesia, e o triunfo da classe proletária”.

Com isso esclarecido, é evidente que o “herói” pode ser um denominador comum que abarca as formas e significados mais variados. Morrer, sacrificar a vida, pode ser válido somente no plano técnico e coletivo, melhor dizendo, no plano hoje chamado brutalmente de “material humano”. É evidente que não é em tal plano que a guerra pode reivindicar um autêntico valor espiritual para o indivíduo, quando este se apresenta não como “material”, mas sim – à maneira romana – como personalidade. Isto não se realiza apenas quando há uma relação dupla entre meio e fim, mas também quando o individuo é um meio em relação à guerra e aos seus fins materiais, mas simultaneamente, quando a guerra, por sua vez, transforma-se num meio em relação ao individuo, oportunidade ou via cujo fim seja a sua realização espiritual, favorecida pela experiência heróica. Neste caso há síntese, energia e máxima eficácia.

Nesta ordem de idéias, e em função do que dissemos anteriormente, é evidente que todas as guerras não nos oferecem as mesmas possibilidades. E isto em função de analogias, absolutamente abstratas, embora positivamente ativas, segundo os caminhos, invisíveis para a maioria, que existe entre o caráter coletivo predominante nos diferentes ciclos de civilização e o elemento que corresponde a este caráter no todo da entidade humana. Se a era dos mercadores e servos é aquela na qual predominam as forças correspondentes às energias que definem no homem o elemento pré-pessoal, físico, instintivo, telúrico ou simplesmente orgânico-vital, na era dos guerreiros, na dos chefes espirituais são expressadas forças que correspondem respectivamente no homem ao caráter e à personalidade espiritualizada, realizada segundo o seu destino sobrenatural. De acordo com o que desenvolve o transcendente no indivíduo, é evidente que numa guerra, a maioria não pode mais que sentir coletivamente o despertar correspondente, mais ou menos, com a influência preponderante, ainda que dependa também das causas que pesaram na declaração de tal guerra. Em função de cada caso, a experiência heróica conduz a diversos pontos e sobretudo a “três” formas.

No fundo, correspondem às três possibilidades de relação que podemos verificar pela casta guerreira e seu princípio em relação às outras articulações já examinadas. Pode-se verificar o estado normal de uma subordinação ao princípio espiritual, onde o heroísmo como desencadeamento conduz à supravida e à suprapersonalidade. Mas o princípio guerreiro pode ser um fim em si mesmo, rejeitando admitir aquilo que há de superior nele, neste caso a experiência heróica dá lugar a um tipo “trágico”, arrogante e temperado como o aço, mas sem luz. A personalidade permanece – está inclusive reforçada – como lhe ordena o limite do seu lado naturalista e humano. Este tipo de herói sempre oferece certa garantia de grandeza e naturalmente, para os tipos hierarquicamente inferiores, “burgueses” ou “servos”, este heroísmo e esta guerra significa superação, elevação e realização. O terceiro caso se refere ao princípio guerreiro degenerado, ao serviço de elementos hierarquicamente inferiores (última casta). Aqui a experiência heróica se associa quase fatalmente a uma evocação, um desencadeamento de forças instintivas, pessoais, coletivistas, irracionais, provocando finalmente uma lesão e uma regressão na personalidade do indivíduo, o qual, rebaixado a tal nível, está condicionado a viver a situação da forma passiva ou sob a sugestão de mitos e impulsos passionais. Por exemplo, os romances de Eric Maria Remarque não refletem mais que uma possibilidade deste gênero: pessoas levadas à guerra por falsos idealismos e que constatam que a realidade é diferente. Não são desertores nem covardes, mas no meio de terríveis provas, são sustentados exclusivamente por forças elementares, impulsos instintivos, reações meramente humanas, sem conhecer um só instante de luz. [1]

Para preparar uma guerra no plano material mas também no espiritual, é preciso ver tudo isso de forma clara e firme, para que as almas e energias possam ser orientadas até a solução mais elevada, a única que convém às idéias tradicionais.

Logo seria preciso espiritualizar o princípio guerreiro. O ponto de partida poderia ser o desenvolvimento virtual de uma experiência heróica, no sentido da mais elevada das três possibilidades que analisamos.

Mostrar como esta possibilidade mais elevada, mais espiritual, foi plenamente vivida nas grandes civilizações que nos precederam, ilustrando assim o seu aspecto constante e universal, é algo que não depende da simples erudição. È precisamente o que nos propomos fazer a partir das tradições inerentes à romanidade antiga e medieval.


[1] Cf. J. Evola: “Dal ‘Nulla di nuovo sul fronte ocidentale’ al Ritorno’”, in La vita italiana, novembro de 1931.

domingo, 5 de julho de 2009

Depois de um longo e tenebroso inverno...

Voltamos de profundis.

Aguardem ótimas novidades para breve.

4. "Thou wast, Brynhild, | Buthli's daughter,
For the worst of evils | born in the world;
To death thou hast given | Gjuki's children,
And laid their lofty | house full low."

Brynhild spake:
5. "Truth from the wagon | here I tell thee,
Witless one, | if know thou wilt
How the heirs of Gjuki | gave me to be
joyless ever, | a breaker of oaths.

6. "Hild the helmed | in Hlymdalir
They named me of old, | all they who knew me.

7. "The monarch bold | the swan-robes bore
Of the sisters eight | beneath an oak;

Twelve winters I was, | if know thou wilt,
When oaths I yielded | the king so young.

8. "Next I let | the leader of Goths,
Hjalmgunnar the old, | go down to hell,
And victory brought | to Autha's brother;
For this was Othin's | anger mighty.

9. "He beset me with shields | in Skatalund,
Red and white, | their rims o'erlapped;
He bade that my sleep | should broken be
By him who fear | had nowhere found.

10. "He let round my hall, | that southward looked,
The branches' foe | high-leaping burn;
Across it he bade | the hero come
Who brought me the gold | that Fafnir guarded

11. On Grani rode | the giver of gold,
Where my foster-father | ruled his folk;
Best of all | he seemed to be,
The prince of the Danes, | when the people met.

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