Alphonse van Worden - 1750 AD
A partir das primeiras décadas do século XX, numerosos autores e líderes políticos, provenientes de diversos países e contextos culturais (Corneliu Codreanu, Ernst Jünger, Julius Evola, Otto Strasser, Nikolai Ustrialov, Ernst Niekisch, Carl Schmitt, Giovanni Gentile, etc.) começaram a lançar os alicerces filosóficos, espirituais e políticos do que aqui denominaremos de GRANDE SÍNTESE, vale dizer, a ampla convergência entre todas as correntes de pensamento anticapitalistas, antiliberais e antiburguesas, por um lado; e por outro, todas as tradições esotéricas (mormente as de cunho não-dualista) da revolta irracionalista contra a ‘Modernidade’ e a 'Sociedade Aberta' ao longo da História.
Tal panorama ideológico não constitui, claro está, um quadro estático, nem tampouco é possível estabelecer uma tipologia estanque para ele; amiúde há, com efeito, um constante intercâmbio entre diferentes matrizes filosóficas no seio de um mesmo autor, por exemplo, e até mesmo, em alguns casos, um caótico amálgama de vetores contraditórios. Entre os exemplos pioneiros e emblemáticos deste fenômeno, podemos citar figuras como o escritor alemão Ernst Jünger, a um só tempo predicando, por um lado, a nostalgia da gemeinschaft orgânica, do medievo germânico e, por outro, a ‘mobilização total’ (Totale Mobilmachung) da sociedade industrial em prol de um estado de guerra permanente / o primado de uma casta aristocrática formada por guerreiros, pensadores e poetas; o também alemão Carl Schmitt, insigne jurista e filósofo político, que defende a tese de que todas as categorias da política têm um fundamento teológico, bem como a noção de que a ‘fenômeno político’ se configura como o terreno privilegiado da contraposição, da disjuntiva 'amigo/inimigo', sem apelo a quaisquer injunções de cunho ético ou racional; o peruano José Carlos Mariátegui, que mesmo sendo marxista, advoga, sob a influência de Sorel e Péguy, que "a força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito."; o italiano Julius Evola, senhor d’um estilo inigualável em sua forja majestosa e estratosférico arrebatamento, com sua defesa do retorno aos arcanos da Tradição como combustível espiritual para a revolta contra o mundo moderno; a francesa Savitri Devi Mukherji (nascida Maximiani Portaz), cuja obra é um ousado e fascinante exercício de incorporação da mística nacional-socialista aos princípios do Vedanta; entre outros autores.
É mister salientar que, na esfera mais propriamente ‘política’ do projeto da Grande Síntese , a superação da falsa dicotomia entre 'esquerda' e 'direita', que gerou as grandes tragédias políticas e militares da modernidade, é sem dúvida a grande tarefa a que se propõe a chamada Terza Posizione, termo cunhado em 1978 com a criação do movimento político homônimo em Itália, sob a liderança de Peppe Di Mitri, e tendo como principais ideólogos Roberto Fiore e Gabriele Adinolfi.
Com efeito, torna-se cada vez mais evidente a existência d'uma oposição irreal, posto que ditada por meras circunstâncias transitórias de índole 'política', 'econômica' e 'cultural', entre dois campos semânticos e simbólicos unidos por um profundo elo metafísico: a revolta sagrada do Espírito contra a ditadura ‘funcionalista’ da Razão; do impulso romântico-messiânico contra os falsos ídolos do pragmatismo burguês; da esfera necessária, permanente, imutável e infinita da ETERNIDADE contra a dimensão contingente, transitória, cambiável e finita do TEMPO (ou então, nos termos d'uma belíssima declaração do líder taliban mullah Omar: "não tememos a morte, pois já estamos mortos; assim sendo, vivemos no Tempo, mas combatemos na Eternidade."); enfim, do rutilante fulgor da TRADIÇÃO contra a pseudoconsciência errática e fragmentária da MODERNIDADE.
E malgrado Di Mitri, Fiore e Adinolfi tenham cunhado o termo e, de certa forma, delineado os aspectos gerais do pensamento Terza Posizione, penso que o filósofo russo Aleksandr Dugin (tido, aliás, como um dos principais conselheiros políticos de Vladimir Putin, ex-presidente e atual primeiro-ministro da Rússia) é hoje, mormente em relação a questões de geopolítica, o pensador mais ousado no âmbito de tal perspectiva ideológica.
A grande 'estratégia' duginiana , por assim dizer, é justamente trabalhar, no âmbito da noção de 'geografia sagrada', categorias de análise tradicionalmente empregues na reflexão geopolítica.
E em que consiste tal noção? Enquanto a geopolítica opera na esfera do cálculo econômico, das relações comerciais, do paralelogramo das forças políticas em ação, a 'geografia sagrada' mergulha no universo dos Arquétipos Tradicionais e Mitos Fundadores, isto é, no escopo do substrato simbólico presente na origem de cada complexo civilizacional. E tal processo envolve, na esfera mais especificamente político-ideológica, a busca pela seiva vital das tradições culturas e civilizações de índole telurocrática e / ou eurasiana, isto é, dos complexos civilizacionais cujos alicerces mais profundos vão de encontro ao 'atlantismo talassocrático’, à 'Sociedade Aberta', ao iluminismo e ao liberalismo.
TELUCRACIA, termo cunhado pelo geógrafo britânico Halford Mackinder (mas que Dugin emprega numa acepção de certa forma distinta da acepção original), significa literalmente 'Poder / Governo / Império Terrestre', em oposição à TALASSOCRACIA, isto é, 'Poder / Governo / Império Marítimo'.
As seguintes passagens de From Sacred Geography to Geopolitics (1996) esclarecem bem o contexto em que Dugin emprega tais conceitos (os grifos são meus):
The two primary concepts of geopolitics are land and sea. Just these two elements —Earth and Water — lie at the roots of human qualitative representation of earthly space. Through the experience of land and sea, earth and water, man enters into contact with the fundamental aspects of his existence. Land is stability, gravity, fixity, space as such. Water is mobility, softness, dynamics, time.
Ou seja, o autor russo descreve o antagonismo essencial entre o ethos 'telurocrático', lastreado no arquétipo da PERMANÊNCIA; e o ethos 'talassocrático', que reverbera o arquétipo da MUDANÇA; tal contraposição corresponde, em termos de simbolismo mítico, respectivamente à oposição entre ETERNIDADE e TEMPO, mormente no âmbito da metafísica platônico/agostiniana (alicerce central da metafísica ocidental) e das doutrinas védicas (pilar central da metafísica hinduísta).
(...) Earth, Sea, Ocean are in essence the major categories of earthly existence, and for mankind it is impossibile not to see in them some basic attributes of the universe. As the two basic terms of geopolitics, they preserve their significance both for civilizations of a traditional kind and for exclusively modern states, peoples and ideological blocks. At the level of global geopolitical phenomena, Land and Sea generated the terms: thalassocratia and tellurocratia, i.e. “ power by means of the sea ” and “ power by means of the land ”. The force of any state and any empire is based upon the preferential development of one of these categories. Empires are either “thalassocratic”, or “tellurocratics”. The former imply the existence of a mother country and colonies, the latter of a capital and provinces on “common land”. In the case of “thalassocracy” its territory is not unified into one land space - which creates an element of discontinuity. The sea — here lies both strength and weakness of “ thalassocratic power ”. “Tellurocracy”, vice-versa, has the quality of territorial continuity.
Com efeito, a Humanidade organiza-se socialmente, tanto em termos políticos e econômicos quanto culturais e espirituais, a partir de estruturas telurocráticas ou talassocráticas. E tal conjunto de características, vale sublinhar, nem sempre depende puramente da ‘geografia física’ d’uma civilização: Dugin argumenta, por exemplo, que o arquipélago japonês estrutura-se, política, cultural e espiritualmente, isto é, em termos de ‘geografia sagrada’, a partir d’um incontrastável perfil telurocrático, muito embora, geopoliticamente falando, em tese constitua um poder talassocrático.
No restante do ensaio, Dugin desenvolve com mais vagar a ampla gama de diferentes matizes e elementos embutidos nos conceitos em tela. Os imponentes parágrafos com que o pensador russo encerra seu texto contribuem, se calhar, para tornar mais nítido o horizonte conceitual em tela (novamente, os grifos são meus):
During the struggle, the flame of the “resurrection of the spiritual North”, the flame of Hyperborea transforms the geopolitical reality.The new global ideology is the ideology of Final Restoration, putting the final dot to the geopolitical history of civilization - but not that dot, which wanted to put the mondialist spokesmen of the End of History. The materialistic, atheistic, antisacral, technocratic, atlantist variant of the End is turned into a different epilogue — the final Victory of the sacred Avatar, the coming of the Terrible Destiny, giving those who chose voluntary poverty a reign of spiritual abundance, and to those who preferred wealth founded on assassination of Spirit, eternal damnation and torments in hell.
The missed continents are lifted from the abysses of the past. Invisible meta-continents appear into reality. A New Earth and New Heaven arise.
This path is not from sacred geography to geopolitics, but on the contrary, from geopolitics to sacred geography.
A GRANDE SÍNTESE, assim sendo, alimenta-se da 'geografia sagrada', indo além, portanto, da mera análise geopolítica, da mera consideração a propósito das relações econômicas, da avaliação do jogo político, etc. Consiste, sobretudo, de um vasto e ambicioso esforço de compreensão do que há de mais recôndito, de mais arcano, de mais primordial, de mais fatal e inexorável em cada cultura; ou seja, do substrato simbólico, dos arquétipos fundamentais, dos mitos fundadores de cada civilização, com o fito de encontrar o 'elo perdido' na aurora da História, a remota unidade transcendente entre todas as grandes Tradições orientais e ocidentais. E já assumindo rasgos inequivocamente proféticos, muito embora perfeitamente coerentes no plano da lógica interna da 'geografia sagrada', Dugin antevê, por um lado, a derrocada final do 'Reino da Quantidade', mundo caótico e destituído de ideais, uma civilização agonizante e descrente, onde os valores tradicionais foram abandonados em nome das evanescentes ilusões do Tempo e da Matéria; e por outro, a gloriosa ascensão do Traditionswelt encarnado nas civilizações telurocráticas, onde, apesar de seu relativo atraso em termos de desenvolvimento tecnocientífico, permanece viva, mesmo que eventualmente em estado de latência, a potestade e a sabedoria perene que emanam da ETERNIDADE e do ESPÍRITO.
Por fim, um escólio de importância marginal, mas ainda assim necessário, quero crer. A perplexidade que algumas passagens de Dugin provocam é algo perfeitamente compreensível, não só pelo emprego deliberado d'uma retórica messiânica, em tom quase profético (a meu juízo curiosamente ecoando os versos apocalípticos de William Blake), mas também pela ruptura com vários paradigmas consagrados pelo pensamento político e sociológico mainstream, à direita e à esquerda. O autor ultrapassa de tal modo, com tamanha ousadia conceitual e ambição teórica, a estreiteza filosófica dos parâmetros de análise ‘consagrados’ na esfera das Ciências Sociais, que, de facto, o leitor habituado às abordagens acadêmicas ‘padronizadas’, sente-se desacorçoado, desorientado, quase que irremediavelmente perdido num indeslindável labirinto de signos e símbolos obscuros.
***
A plena compreensão do que está efetivamente em jogo no projeto da Grande Síntese envolve, há que frisar, não só o firme talante de romper com o rigor mortis dos esquematismos ideológicos, mas também de imbuir-se d'uma disposição de espírito que envolve, em última instância, a fome do Absoluto; o esquecimento de si mesmo no ‘Vale do Aniquilamento’ (ó Attar, onde estás que não respondes?); o ato de arrojar-se no vórtice flamejante das paixões revolucionárias; de engajar-se nos horizontes da revolta messiânica contra a modernidade e, porventura, até mesmo o temerário mergulho nos vertiginosos báratros do aórgico...
Não sei se me fiz entender; muito provavelmente, não: apenas começo a singrar, no limite de minhas parcas possibilidades, um vasto e arcano Universo, com seus oceanos ignotos e fossas abissais, onde a lux aeterna dos séculos se desintegra em reflexos crepusculares... de todo modo, icei âncora, enfunaram-se as velas, fiz-me ao mar... para onde? Não sei; segue adiante, caravela onírica, pois "navegar é preciso", mesmo sendo árduo o périplo, e incerto o fado...