Metafisica da Guerra
Cap. V e Final de "Metafísica da Guerra", de Julius Evola
A sua escolha não é arbitrária nem deve nada ao exotismo. Conforme a tradição islâmica nos permite formular, no universal a idéia de “grande guerra” interior, possível contrapartida da alma numa guerra exterior, a tradição transmitida pelo texto hindu nos permite enquadrar definitivamente nosso tema numa visão metafísica.
Sob um olhar mais abrangente, esta referência ao Oriente hindu, ao grande Oriente heróico e não àquele dos teólogos, dos panteístas humanitários e das velhas damas em êxtase diante de Gandhi e dos Rabindranath Tagore, parece-nos igualmente útil para ratificar as opiniões e a compreensão supra tradicional que não são os mínimos objetivos que nós procuramos. Ficamos tempo demais escravos das antíteses artificiais Oriente/Ocidente: artificiais pois são baseadas no último Oriente modernista e materialista, que afinal, tem pouco de comum com aquele que o precedeu, com a verdadeira e grande civilização ocidental. O Ocidente moderno é tão oposto ao Oriente como o é ao antigo Ocidente. Ao voltar para um passado remoto, vemos um patrimônio étnico e cultural largamente comum, e que corresponde logo a uma única denominação “indo-européia”.
As formas originais de vida e de espiritualidade, das instituições dos primeiros colonizadores da Índia e do Irã, tinham muitos pontos de contacto com aqueles povos helênicos e nórdicos, mas também com os antigos Romanos.
Agora vamos abordar as tradições que nos dão um exemplo das afinidades de concepções espirituais comuns, de combate, de ação e de morte heróica, contrariamente à idéia preconcebida surgida sempre que falamos da civilização hindu, quando só pensamos em nirvana, faquires, evasão do mundo, negação dos valores “ocidentais”, da personalidade, etc.
O Bhagavad-Guita foi sob a forma de diálogo, entre o guerreiro Arjuna e um Deus, Krishna, seu mestre espiritual. O diálogo tem lugar durante uma batalha em que Arjuna hesita em combater, freado por seus escrúpulos humanitários. Interpretadas em chaves de espiritualidade, as duas figuras, Arjuna e Krishna, representam as duas partes do ser humano: Arjuna o principio da ação, Krishna o principio do conhecimento transcendente. O diálogo transforma-se numa espécie de monólogo, primeiro de clarificação interior, depois resolução heróica enquanto espiritual do problema da ação guerreira, que se impõe a Arjuna, no momento de entrar no campo de batalha.
Ora, a compaixão que detém o guerreiro, no momento de combater, quando este descobre no campo inimigo os amigos de jogos e alguns de seus parentes, é qualificada por Krishna ( principio espiritual), de “desordem indigna dos Aryas, que fecha o céu e preenche de vergonha” (B.G.II,2 B). Assim retornamos ao tema que já encontramos muitas vezes, nos ensinamentos tradicionais do Ocidente: “ morto, tu ganharás o céu; vencedor, tu possuirás a terra. Levanta-te então, filho de Kunti, para combater” (op.cit., II,37). Ao mesmo tempo se desenha o tema de uma “guerra interior”, guerra que é preciso travar consigo mesmo: “sabendo logo que a razão é a mais forte, afirma-te a ti mesmo; e destrói o inimigo de formas escusas e de abordagem difícil”. (op.cit.,III,43). O inimigo exterior tem, ao lado do inimigo interior, que é a paixão, a sede animal de viver. Vejamos como é definida a justa orientação: “ abandona em mim todas as tuas ações, pensa na Alma suprema, torna-te livre de ti mesmo, combate e teus tormentos irão desaparecer”. Op.cit.,III,30).
Devemos perceber o apelo a uma lucidez, supra consciente e supra passional do heroísmo, assim como não devemos negligenciar esta passagem que sublinha o caráter de pureza, do absoluto que deve ter uma ação e o que ela pode ter em termos de “guerra santa”: “ Tem por igual prazer e pena, ganho e perda, vitória e derrota, e entrega-te inteiramente à batalha: assim evitarás o pecado” (op.cit.,II,38). Assim se coloca a idéia de “pecado”, no que se refere apenas ao estado de vontade incompleto e de ação, interiormente ainda afastada da elevação, na qual a vida significa tão pouco, a sua como a dos outros, e onde nenhuma medida humana possui qualquer lugar.
Se ficarmos neste plano, este texto oferece-nos considerações de ordem absolutamente metafísica, visando mostrar como, num tal nível, acaba por agir sobre o guerreiro uma força mais divina que humana. O ensinamento que Krishna (principio do “conhecimento”) dispensa a Arjuna (principio da “ação”) para acabar com as suas hesitações, visa sobretudo realizar a distinção entre o que é incorruptível como espiritualidade absoluta, e aquilo que existe somente duma maneira ilusória como elemento humano e natural: “Sabemos que o não Ser não tem existência, sabemos também que o Ser nunca deixa de existir (…) Mas saibam que em tudo que isto for penetrado, é indestrutível, (…) aquele que crê que mata e aquele que crê que é morto, estes dois se enganam; nem este mata nem aquele morre (…) não está morto quando o corpo está morto (…) É por isso que combatas, oh Filhos de Bharata! “ (op.cit.,II,16,17,19,20 e 18).
Mas não é tudo. A consciência da irrealidade metafísica daquilo que perdemos, ou fazemos perder, como vida caduca e corpo mortal (consciência que tem seu equivalente numa das tradições que nós já examinamos antes, onde a existência humana é definida como “ jogo e frivolidade”), se associa à idéia que o espírito, no seu absoluto, em sua transcendência diante tudo aquilo que é limitado e incapaz de ultrapassar este limite, não pode aparecer senão como uma força destruidora. Por isso se coloca o problema de ver em quais termos, dentro do ser, instrumento necessário de destruição e de morte, pode o guerreiro evocar o espírito, justamente sob esse aspecto, ao ponto de com ele se identificar. O Bhagavad-Guita assim diz exatamente. Não somente o Deus declara: “Eu sou a virtude dos fortes quando ela é isenta de paixão e de desejo; (…) eu sou o esplendor do fogo; (…) eu sou a vida em todos os seres e o ardor da mortificação dos ascetas; (…) eu sou a inteligência dos sábios, a majestade dos poderosos” (op.VII,11,9,10).
Pois o Deus que Se manifesta a Arjuna sob uma forma transcendente, terrível e fulgurante, e oferece-Lhe uma visão absoluta da vida: tal como lâmpadas submetidas a uma luz muito intensa, com circuito investidos de potência elevada demais, os seres vivos caiem trespassados porque dentro deles queima uma força que transcende a própria perfeição, que vai além de tudo o que eles podem ou almejam. Por causa disto que eles atingem um cume, e como levados por ondas às quais se tinham abandonado e que os levava até um certo ponto, eles arriscam, dissolvem-se, morrem e retornam ao não-manifestado. Mas aquele que não teme a morte, sabe assumir a sua própria morte, passando por lá tudo o que o destrói, engole, quebra, ele acaba por atravessar o limite, consegue manter-se na crista das ondas, não se enterra, ao contrário, aquilo que está além da vida nele é manifestado. É assim que Krishna, a personificação do “principio do espírito”, depois de se ter revelado na sua totalidade a Arjuna, pode dizer: “mesmo sem ti, todos estes guerreiros apresentados nas armadas inimigas vão perecer … Então levanta-te, conquista a tua glória; triunfa sob teus inimigos e adquire um vasto império. Eu já assegurei a derrota deles; sê somente um instrumento, mata-os. Não fiques perturbado; combate e vencerás teus rivais. “ (op.cit., XI,32,33,34).
Portanto encontramos assim a identificação da guerra com o “ caminho de Deus”, como já falamos nas páginas anteriores. O guerreiro cessa de agir enquanto pessoa. Uma grande força, não-humana, transfigura a ação, a torna absoluta e pura, precisamente no momento onde ela deve ser extrema. Vejamos uma imagem muito eloqüente e que pertence a esta tradição: “A vida é como um arco; a alma é como uma flecha; o espírito absoluto o alvo a atingir. Unir-se a este espírito como a flecha disparada se agarra ao alvo”. Esta imagem é uma das mais fortes formas de justificação metafísica da guerra, uma das imagens mais completa da guerra como “guerra santa”.
Para terminar este trabalho das formas de tradição heróica, tal como nos foi apresentado por povos e épocas tão diversas, acrescentaremos ainda algumas palavras de conclusão.
Esta excursão num mundo que pode parecer insólito a alguns e nada tendo a ver com o nosso mundo, nós não o fizemos por curiosidade nem para exibir nossa erudição. Nós o fizemos, pelo contrário, no intuito preciso de demonstrar o sagrado da guerra, pois a possibilidade de justificar a guerra espiritualmente e a sua necessidade, constitui, no senso mais alto do termo, uma tradição. É algo que sempre esteve e sempre se manifestou no ciclo ascendente de todas as grandes civilizações. Porquanto a neurose da guerra, as propagandas humanitárias e pacifistas, as concessões feitas à guerra como “mal necessário”, e fenômeno político ou natural – tudo isto não corresponde a nenhuma tradição, não é mais que uma invenção moderna, recente, a par da decomposição que caracteriza a civilização democrática e materialista, contra a qual se afirmam novas forças revolucionárias.
Neste sentido, tudo aquilo que recolhemos, de fontes tão diversas e com o cuidado constante de separar o essencial do contingente, o espírito da palavra, possam servir a um conforto interior, a uma confirmação, a uma certeza aumentada. Não somente o instinto viril é justificado em termos superiores, mas também a possibilidade de discernir as formas da experiência heróica que correspondem à nossa mais alta vocação, e se desvenda bruscamente.
Agora devemos retornar àquilo que escrevemos no inicio deste estudo, demonstrando que há várias maneiras de ser “herói”, (ver animal e sub-pessoal). Ou seja, o que conta não é tanto a possibilidade vulgar de se lançar numa batalha e de se sacrificar, mas sim o espírito segundo o qual podemos viver uma aventura deste gênero. Agora temos todos os elementos para escolher, entre diferentes aspectos da experiência heróica, aquele que possamos considerar absoluto, aquele que possa verdadeiramente identificar a guerra com o “caminho de Deus”, e dentro do herói, possa realmente, deixar entrever uma manifestação divina.
Mas também, devemos recordar que, quando dizemos que o ponto onde a vocação guerreira atinja realmente um valor metafísico, refletindo a plenitude universal, dentro de uma raça, só pode tender a uma manifestação e a uma finalidade igualmente universais, o que significa: só se pode predestinar esta raça a um império. Pois somente o império, tal uma ordem superior onde reine a paz triumphalis, reflexo terrestre da soberania do “supra-mundo”, pode ser comparável às forças, que dentro do domínio do espírito, manifestam as mesmas características de pureza, de força, de transcendência em relação a tudo que é pathos, paixão e limites humanos, e que se refletem nas grandes e livres energias da natureza.